sexta-feira, outubro 27, 2006

Esboço

[Vermeer]

[Rogério Ortega]

Esboço aqui o traço preciso,
ali um gesto mais lento;
adiante, onde mal diviso
o momento do movimento,

move-se em si, dura e pura,
a engrenagem da beleza
de tua geometria obscura:
prosa, poesia, proeza.

Dedos, pés e mãos

[Degas]
[Lenemar Santos]
O amor não pegou leve;
Ele me tocou e muito forte;
Tocou com dedos, pés e
mãos.
Tocou-me forte;
No meu louco coração.
[em homenagem a um dedinho]

Revés

[Renoir]

[Angela Barreto]
Talvez o bico de um pássaro...
ou mesmo a força da vida...?
deixou cair numa estufa de begônias
a seiva de uma sempre-viva.
Longe do sol, longe das brisas,
onde os dias eram noites
e as noites tão compridas...
de um mundo tão medonho,
sem o vadear das formigas...
nada mais singular aquela simples florzinha
a crescer, sufocada pelas folhas das
begônias já crescidas.

Assim, lutando por outros ares,
que decerto existiriam,
chegou ao tope das majestosas begônias,
sem saber por que dormiam,
se havia tanta luz e
perfume sobre aquelas corolas frias.
E - mais forte que a luz e mais
rápida que a brisa - a florzinha
espalhou-se por toda
a estufa adormecida,
deixando um novo perfume -
sua essência ressequida - naquelas plantas tão grandes,
que viviam sem sentir
o gosto amargo da vida.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Para Mim Você É Uma Obra De Arte

[ Camille Claudel]
[Morrissey]
Vivo uma vida
Sinto uma dor
De cantar esta música
De contar a história
Eu queria nunca nem ter ouvido a canção
Eu vejo o mundo
Ele me faz vomitar
Mas aí eu olho para você e sei
Que em algum lugar existe alguém capaz de me reanimar
Para Mim Você É Uma Obra De Arte
Dar-lhe-ia meu coração, isso se eu tivesse um
Vivo uma vida
Sinto uma dor
De cantar esta música
De contar a história
Eu queria nunca nem ter ouvido a canção
Para Mim Você É Uma Obra De Arte
Dar-lhe-ia meu coração, isso se eu tivesse um

terça-feira, outubro 24, 2006

Mantra

[Nando Reis/Arnaldo Antunes]

Quando não tiver mais nada
Nem chão, nem escada
Escudo ou espada
O seu coração... Acordará

Quando estiver com tudo
Lã, cetim, veludo
Espada e escudo
Sua consciência... Adormecerá

E acordará no mesmo lugar
Do ar até o arterial
No mesmo lar, no mesmo quintal
Da alma ao corpo material

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama
Hare Hare

Quando não se têm mais nada
Não se perde nada
Escudo ou espada
Pode ser o que se for... Livre do temor

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama
Hare Hare

Quando se acabou com tudo
Espada e escudo
Forma e conteúdo
Já então agora dá... Para dar amor

Amor dará e receberá
Do ar, pulmão; da lágrima, sal
Amor dará e receberá
Da luz, visão do tempo espiral

Amor dará e receberá
Do braço, mão; da boca, vogal
Amor dará e receberá
Da morte o seu guia natal

Adeus dor

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama
Hare Hare

A minha gratidão é uma pessoa

[Romero Brito]

[Nando Reis]
Depois de pensar um pouco
Ela viu que não tinha mais motivo e nem razão
E pôde perdoa-lo
É fácil culpar os outros
Mas a vida não precisa de juizes
A questão é sermos razoáveis
E por isso voltou
Porque sempre o amor
Mesmo levando a dor
Daquela mágoa
Mas segurando a sua mão
Sentiu sorrir seu coração
E amou-o como nunca havia amado
Mas como começar de novo
Se a ferida que sangrou
Me acostumou a me sentir prejudicado
É só você lavar o rosto
E deixar que a água suja
Leve longe do seu corpo
O infeliz passado
E por isso voltou
Pra quem sempre amou
Mesmo levando a dor
Daquela mágoa
Mas segurando a sua mão
Sentiu sorrir seu coração
E amou-o como nunca havia amado
E viveram felizes para sempre
E viveram felizes para sempre
Eles estavam livres da perfeição que só fazia estragos

segunda-feira, outubro 23, 2006

Versos Íntimos

[ArthurRackham]

[Augusto dos Anjos]

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

quinta-feira, outubro 19, 2006

Odes de Ricardo Reis

[Sisley]
[Fernando Pessoa]
Do que Quero

Do que quero renego, se o querê-lo
Me pesa na vontade. Nada que haja
Vale que lhe concedamos
Uma atenção que doa.
Meu balde exponho à chuva, por ter água.
Minha vontade, assim, ao mundo exponho,
Recebo o que me é dado,
E o que falta não quero.

O que me é dado quero
Depois de dado, grato.
___________________________________
Não Sei se é Amor que Tens
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro. Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

Nem quero mais que o dado
Ou que o tido desejo.

sexta-feira, outubro 13, 2006

Amor é fogo que arde sem se ver

[Parrish]

[Luís de Camões]

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O Amor

[Gibran Kahlil Gibran]

Então, Almitra disse: “Fala-nos do amor.”
E ele ergueu a fronte e olhou para a multidão,e um silêncio caiu sobre todos, e com uma voz forte, disse: Quando o amor vos chamar, segui-o, embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
e quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe, embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos; e quando ele vos falar, acreditai nele, embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos como o vento devasta o jardim.

Pois, da mesma forma que o amor vos coroa, assim ele vos crucifica.
E da mesma forma que contribui para vosso crescimento, trabalha para vossa queda.
E da mesma forma que alcança vossa altura e acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol, assim também desce até vossas raízes e as sacode no seu apego à terra.
Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.

Ele vos debulha para expor vossa nudez.
Ele vos peneira para libertar-vos das palhas.
Ele vos mói até a extrema brancura.
Ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.
Então, ele vos leva ao fogo sagrado e vos transforma no pão místico do banquete divino.

Todas essas coisas, o amor operará em vós para que conheçais os segredos de vossos corações e, com esse conhecimento, vos convertais no pão místico do banquete divino.

Todavia, se no vosso temor, procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor, então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez e abandonásseis a eira do amor, para entrar num mundo sem estações, onde rireis, mas não todos os vossos risos, e chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.

O amor nada dá senão de si próprio e nada recebe senão de si próprio.
O amor não possui, nem se deixa possuir.
Porque o amor basta-se a si mesmo.
Quando um de vós ama,
que não diga:
“Deus está no meu coração”,
mas que diga antes:
"Eu estou no coração de Deus”.

E não imagineis que possais dirigir o curso do amor, pois o amor, se vos achar dignos,determinará ele próprio o vosso curso.
O amor não tem outro desejo senão o de atingir a sua plenitude.

Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos, sejam estes os vossos desejos:
de vos diluirdes no amor e serdes como um riacho que canta sua melodia para a noite;de conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
de ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor e de sangrardes de boa vontade e com alegria;
de acordardes na aurora com o coração alado e agradecerdes por um novo dia de amor;
de descansardes ao meio-dia e meditardes sobre o êxtase do amor;de voltardes para casa à noite com gratidão;
e de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,e nos lábios uma canção de bem-aventurança.

terça-feira, outubro 10, 2006

Chanson D'Automne [Canção de Outono]

[wiliam]

[Paul Verlaine]
Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure.

Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

________
[tradução]
Os soluços graves
dos violinos suaves
do outono ferem a minh'alma
num langor de calma
e sono.

Sufocado em ânsia,
Ai! quando à distância
soa a hora,
meu peito magoado
relembra o passado
e chora.

Daqui, dali,
pelo vento em atropelo
seguido,vou de porta em porta
como a folha morta,
batido...
Tradução de Alphonsus de Guimaraens

segunda-feira, outubro 09, 2006

Trechos de "Werther", de Goethe

[ Picasso]

"Hoje não pude ir ver Carlota, uma visita inesperada me segurou em casa. Que havia de fazer? Mandei o meu criado ao encontro dela, só para ter junto de mim alguém que tivesse estado em sua presença. Com que impaciência o esperei, com que alegria tornei a vê-lo! Não tivesse vergonha e teria me atirado ao seu pescoço e coberto seu rosto de beijos.
Falam que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Dava-se o mesmo comigo e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota haviam pousado em seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo, tornava-o tão querido, tão sagrado para mim! Naquele momento não daria aquele rapaz nem por mil táleres! Me sentia tão bem em sua presença...Deus te livre de rir disso, Guilherme! Serão sempre fantasmas os responsáveis por nos sentirmos bem?"
_________________________________

"Ah, como vocês são sensatos! Paixão! Ebriedade! Loucura! Vocês, defensores da moral, tudo contemplam com tanta calma, tão indiferentes, vocês recriminam o bêbado, desprezam o louco (…) Eu me embriaguei mais de uma vez na vida, minhas paixões nunca estiveram distantes da loucura e não me arrependo. (…) É insuportável ouvir gritarem, quando alguém se comporta de maneira livre, nobre, inesperada:'Esse homem bebeu demais, está louco! Vocês, homens tão sóbrios e sábios deviam envergonhar-se!"
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"Ela não me vê, não sente que prepara um veneno que vai nos destruir ambos. E eu bebo com volúpa a taça em que ela me oferece a morte? Por que olha, tantas vezes, de um jeito tão bondoso? Nem sempre, mas enfim, às vezes. Por que essa complacênia com que aceita as expressões involuntárias dos meus sentimentos, e a compaixão pelo sofrimento que transparece em seu rosto?Ontem, ao sair, ela estendeu-me a mão dizendo: "Adeus, querido Werther!" Querido Werther! É a primeira vez que me chama assim, e a alegria que me senti penetrou-se até a medula dos ossos. Repeti a palavra centenas de vezes e, à noite, ao deitar-me, eu disse "boa noite, querido Werther!", e não pude deixar de rir de mim mesmo. "
_________________________________

"Que a vida do ser humano não passe de um sonho, eis uma impressão que muitas pessoas já tiveram, e eu também vivo permanentemente com essa sensação. Quando observo as limitações que cerceiam as forças ativas e criadoras do homem, quando vejo como toda a atividade se resume em satisfazer as nossas necessidades, que, por sua vez, não visam outra coisa senão prolongar nossa pobre existência; quando percebo que todo apaziguamento em relação a determinados pontos de nossas buscas constitui apenas uma resignação ilusória, uma vez que adornamos com figuras coloridas e esperanças luminosas as paredes que nos aprisionam -- tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Volto-me para mim mesmo, e encontro todo um mundo dentro de mim! Novamente, vejo-o mais a partir de pressentimentos e de vagos desejos, muito mais do que nitidamente contornado e povoado de forças vivas. Tudo então passa a flutuar diante dos meus sentidos, e prossigo sorrindo e sonhando na minha jornada pelo mundo.
Todos os pedagogos eruditos são unânimes em afirmar que as crianças não sabem por que desejam determinada coisa; mas também os adultos, como as crianças, andam ao acaso pela terra, e, tanto quanto elas, ignoram de onde vêm ou para onde vão; como elas, agem sem propósito determinado e, igualmente, são governados por biscoitos, bolos e varas de marmelo: eis uma verdade em que ninguém quer acreditar, embora ela seja óbvia, no meu entender.
Concordo -- pois já sei o que me vais responder -- que os mais felizes são aqueles que, como as crianças, vivem a esmo dia após dia, carregando suas bonecas, vestindo e despindo-as, rondando respeitosos a gaveta onde a mãe guardou o pão doce, e gritando, com a boca cheia, quando finalmente conseguem o que cobiçavam: "Quero mais!" Estes são felizes. Também são ditosos aqueles que dão títulos pomposos às suas míseras ocupações ou até mesmo às suas paixões, alegando que se trata de empreendimentos gigantescos, destinados à salvação e ao bem-estar da humanidade. Bem-aventurado aquele que consegue ser assim! Mas aquele que humildemente percebe a que leva tudo isso, vendo como o cidadão, quando satisfeito, transforma o seu pequeno jardim num paraíso, como, por outro lado, até mesmo o deserdado da fortuna carrega corajosamente o fardo e segue o seu caminho, e como todos, afinal, desejam igualmente enxergar a luz do sol por um minuto mais -- quem observa a tudo isso recolhe-se no silêncio, molda o seu mundo à semelhança de seu próprio íntimo, e também é feliz porque é um ser humano. E então, por mais limitado que seja, guarda sempre no coração a doce sensação da liberdade, sabendo que poderá livrar-se do cárcere quando quiser. "

sábado, outubro 07, 2006

Poesias Coligidas

[Van Gogh]
[Fernando Pessoa]

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

___________________

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Os sonhos

[waterhouse]
[Abdias Sá]


De repente acordo e vejo bem perto
De mim, colado quase ao meu, desnudo,
Também, cansado, inerte no veludo,
O corpo dela, sem censura, aberto

O coração, de sentimento incerto,
Às vezes, mesmo, indiferente a tudo.
De tanto vê-la assim me desiludo
E me entristeço sempre que desperto.

Sem esperança de acordar com ela,
Eu fico preso ao meu amor constante
E paro, e penso e sinto, num instante,

Quando ela dorme, assim, imóvel, bela:...
Eu dos seus sonhos estou tão distante,
Que nem parece que estou junto dela.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Estante Virtual

Oportunidade interessante para aqueles que têm alergia ao mofo e a poeira dos sebos: a possibilidade de garimpar, no Brasil, livros de mais de 191 sebos e livreiros em todo o país. São mais de 3,3 milhões de títulos a disposição no sítio Estante Virtual. Recomendo.

A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock

[Renoir]


[Thomas Sterns Eliot]

Vamos então, tu e eu,
Quando a tarde se estende contra o céu
Como na mesa um doente sob anestesia;
Vamos a caminhar nessas ruas vazias,
Refúgios murmurantes
De noites sem repouso em hotéis baratos de pernoite
E desses restaurantes
Juncados de conchas de ostra e serradura:
Ruas que seguem qual tedioso argumento
No insidioso intento
De levar-te a uma tese opressiva e insegura ...
Oh, "Qual?" Não procures saber.

Vamos fazer
Nossa visita
As mulheres pra lá e pra cá na sala caminhando
E sobre Miguel Ângelo palrando.
A neblina amarela que esfrega o dorso nos vidros da janela,
A neblina amarela que esfrega o focinho nas vidraças
A língua insinuou nos recantos da tarde,
Demorou-se nas poças das sarjetas,
Nas costas recebeu a fuligem caída das chaminés,
Resvalou no terraço, fez súbita investida
E vendo que suave era a noite de outubro
Pela casa enroscou-se e adormeceu.

E haverá tempo, na verdade,
Para a névoa amarela que nas ruas desliza
As costas a esfregar nos vidros das janelas;
Haverá tempo, haverá tempo
De a face preparar para encontrar
as faces que defrontas;
Para matar, criar, haverá tempo
E para os trabalhos todos e os dias de mãos
Que erguem e instilam em teu prato uma questão;
Para ti, para mim tempo haverá
E para cem indecisões
E um cento de visões e revisões,
Antes de uma torrada e xícara de chá.

As mulheres pra lá e pra cá na sala caminhando
E sobre Miguel Ângelo palrando.

E haverá tempo, na verdade,
Para me interrogar: "Ousarei?" e "Ousarei?"
Para os degraus descer, retroceder caminho,
Uma calva no meio dos cabelos ...
(Eles dirão: "Vão ficando tão ralos seus cabelos!")
Meu fraque, o duro colarinho
Subindo até o queixo, gravata rica e discreta
Mantida com alfinete em posição correta ...
(Eles dirão: "Mas que finos seus braços, suas pernas!")

Ousarei perturbar o universo?
E haverá tempo em um minuto
Para resoluções e revisões que em um minuto
Terão o seu reverso.

Pois eu já conheço todos, já os conheço...
Conheci as manhãs, tardes, noitinhas,
Minha vida medi às colherinhas;
Sei das vozes morrendo em mortiço declínio
Sob música a soar numa sala distante.
Como então me arriscar?

E os olhos eu os conheço todos, já os conheço ...
Que te fixam em uma frase-fórmula
E estando eu formulado, estatelado em um alfinete,
Espetado, contorcendo-me à parede,
Como começaria
A cuspir os tocos de meus dias e vias?
E como me atreveria?
E os braços já os conheço todo, já os conheço ...
Empulseirados e brancos e nus
(Mas com uma penugem castanho-clara sob a luz!)

É o perfume de um vestido
Que me faz tão distraído?
Braços por sobre a mesa repousados,
Ou em um xale enrolados,
E então me arriscaria?
E como começaria?
Direi que ao escurecer andei pelas vielas
E vi erguer-se o fumo dos cachimbos
De homens sós e em mangas de camisa,
Debruçados das janelas?...

Devia eu ser um par de garras laceradas
Em fuga pelo chão de mares silenciosos.
E a hora vespertina, quão tranqüilamente
Dorme, por longos dedos serenada,
Cansada ... entorpecida ... ou a se fazer doente,
Estendida no chão, aqui junto a nós dois.

Depois do chá e bolos e sorvetes, teria eu energia
De o momento impelir até sua crise?
Mas tenha eu chorado embora e jejuado e rezado
E visto minha cabeça (levemente calva) ser trazida em um prato,
Não sou profeta ... e isso pouco importa:
Meu instante de grandeza eu senti vacilar
E o eterno Lacaio vi meu casaco ir buscar a sorrir zombeteiro
E enfim, tive medo.

E valeria a pena, após tudo,
As xícaras, o chá, a marmelada,
Por entre a porcelana e as palavras trocadas,
Valeria a pena,
Ter o caso trincado com um sorriso
E ter o universo espremido, transformado em bola,
Rolado para uma questão esmagadora,
Declarar: "Sou Lázaro, de entre os mortos voltei,
Venho para dizer-te tudo e tudo dir-te-ei"...

Se alguém dissesse
Ajeitando à cabeça uma almofada:
"Não é o que eu tinha em mente, de maneira alguma,
Não é isso, absolutamente"
E valeria a pena, após tudo,
Valeria a pena,
Após o sol no poente e o pátio e as
ruas irrigadas
E os romances e o chá e as saias
arrastadas pelo chão...

E isso e quanto mais?...
É impossível expressar-me exatamente!
Mas como se os nervos fossem projetados
Em desenhos, por lanterna mágica:
Valeria a pena se alguém,
Ajeitando a almofada ou afastando o xale, dissesse
Voltando-se para a janela:
"Não é isso, absolutamente,
Não é o que eu tinha em mente, absolutamente."

Não! não sou o Príncipe Hamlet e nem o pretendia;
Sou um homem da corte, alguém que serviria
Para inflar um cortejo, iniciar uma cena, informar
O príncipe; um fácil instrumento,
Respeitoso, contente de ser posto em uso,
Político, meticuloso, cauteloso;
Cheio de altas sentenças, mas um tanto obtuso;
Ridículo, quase o diria, em alguns momentos...

Em alguns momentos quase, na verdade, o Bobo.
Envelheço...envelheço...
As calças usarei enrolando as bainhas do avesso.
Partirei meus cabelos junto à nuca?
Ousarei comer pêssego?
Usarei calças de flanela branca e andarei pela areia

Cantando uma para as outras ouvi
Não creio que para mim elas hão de cantar.
Quando ao sopro do vento a água é negra e branca
Eu as vi, mar a dentro, as ondas cavalgando
E os cabelos das ondas, que voltam, penteando.
Coroados de castanhas algas pelas jovens
Do mar, nas câmaras do mar nos demoramos.

Despertos pela humana voz, nos afogamos.

quarta-feira, outubro 04, 2006

O Maior Bem

[Kay Nielsen]

[Florbela Espanca]

Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente,
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda a gente.

Mesmo a beijar-me, a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Poisa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...

Mas que me importa a mim que me não queiras,
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo,

Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens!
É tudo quanto eu tenho neste mundo?

terça-feira, outubro 03, 2006

Diário

[Carlos Araujo]

[Jack Kerouac]

"(...)Quanto a mim, a base da minha vida vai ser uma fazenda, em algum lugar, onde vou produzir parte e se necessário toda, da minha própria comida. Um dia não vou fazer coisa alguma, além de sentar me debaixo de uma árvore para ver a minha lavoura crescer (depois do devido trabalho, claro) – e beber vinho caseiro, e escrever romances para edificar o espírito, e brincar com os meus filhos, e relaxar, e gozar a vida, e brincar, e assoar o nariz.(...)"

Beatrice

[Aubrey Beadsley]


[Antero de Quental]

Nem visao, nem real: amor! amor somente!...
Pois quem sabe o que diz esta palavra - amor - ?
Quando deixa cair no peito esta semente,
Diz o que ha-de brotar, acaso, o Deus-Senhor

Somente amor... Somente?! e pouco esta palavra? Duas silabas
so - em pouco um mundo esta -
Loucos! mas, quando o amor se expande, e cresce, e lavra,
Bem como incendio a arder, tao pouco inda sera?

Gota, que alaga o mundo! atomo, e apos, colosso!
Mas este nada ou mundo, a mim quem mo aqui pos!
Foi Deus! de Deus me vem... e a Deus medir nao posso:
E imenso o que vem dele... os nadas somos nos.

E o nada, que me abriu no peito e, feito imenso,
O encheu, bem como um vaso, abrindo, encheu a flor,
Ha-de alagar teu peito e ser do templo incenso...
Mulher! has-de escutar, que eu vou falar d'amor!

Falar d'amor?!... se ele e como uma essencia,
Que nos perfuma, sem se ver de donde...
Se ele e como o sorriso da inocencia,
Que inda se ignora e, p'ra sorrir, se esconde...

Se e o sonho das noites vaporoso,
Que anda no ar, sem que possamos ve-lo...
Se e a concha no oceano caprichoso,
Se e das ondas do mar ligeiro velo...

Se e suspiro, que oculto se descerra,
Se escuta, mas se ignora de que banda...
Se e estrela, que manda a luz a terra,
Sem se ver de que paramos a manda...

Se e sonho, que sonhamos acordado...
Suspiro, que soltamos sem senti-lo...
Sopro que vai dum lado a outro lado...
Sopro ou sonho, quem pode repeti-lo?

Falar do amor... do amor! o sempre-mudo!
Se e segredo entre dois, como dize-lo,
Sem divulga-lo, sem que o ouca tudo?
Se e misterio encoberto, como ve-lo?...

Eclipse Oculto

[Joan Miro]
(Caetano Veloso)

Nosso amor não deu certo, gargalhadas e lágrimas
De perto fomos quase nada
Tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã
E desperdiçamos os blues do Djavan
Demasiadas palavras, fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida

Não me queixo, eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você, o que será?

Como nunca se mostra o outro lado da lua
Eu desejo viajar do outro lado da sua
Meu coração galinha de leão não quer mais amarrar frustração
Ó eclipse oculto na luz do verão
Mas bem que nós fomos muito felizes só durante o prelúdio
Gargalhadas e lágrimas até irmos pro estúdio
Mas na hora da cama nada pintou direito
É, minha cara, falar, não sou proveito sou pura fama

Nada tem que dar certo, nosso amor é bonito
Só não disse ao que veio, atrasado e aflito
E paramos no meio sem saber os desejos aonde é que iam dar
E aquele projeto ainda estará no ar?
Não quero que você fique fera comigo
Quero ser seu amor, quero ser seu amigo
Quero que tudo saia como som de Tim Maia, sem grilos de mim
Sem desespero, sem tédio, sem fim

segunda-feira, outubro 02, 2006

Loucura

[Pablo Picasso]

[Dom Quixote de La Mancha,
Volume 3
Miguel de Cervantes Saavedra

"A maior loucura que um homem
pode fazer nesta vida é deixar-se
morrer, sem mais nem menos, sem
que ninguém o mate, nem dêem cabo
dele outras mãos que não as da
melancolia. Olhe, não seja preguiçoso:
levante-se dessa cama e vamos-nos ao
campo vestidos de pastores, como
temos concertado. Talvez atrás de
alguma selva encontremos
desencatanda a senhora Dulcinéia,
que não haja mais que ver. Se morre
de pesar por ver-se vencido, deite-me
a culpa, dizendo que por haver
encilhado mal a Rocinante o
derubaram. Tanto mais que vosmecê
deve ter visto em seus livros de
cavalaria ser coisa ordinária
derribarem-se os cavaleiros uns aos
outros, e o vencido de hoje ser o
vencedor de amanhã".


De Verlaine para Arthur Rimbaud



Mortal, anjo e demônio, ou melhor, Rimbaud,
Teu lugar no meu livro é o primeiro, como um prêmio;
Tu que um bobo escritor um dia esculhambou
Achando-te um debochado imberbe, um verme, boêmio.
As espirais de incenso e os acordes do alaúde,

Saúdam tua chegada ao templo da memória,
Onde teu nome esplêndido soará em glória,
Pois me amavas, se preciso, até a plenitude.
Serás para as mulheres, sempre, belo e forte,

De uma beleza assim, agreste e sedutora,
Tão cobiçada quanto desvanecedora!
E a história te erguerá triunfante da morte,

P'ra que, apesar de toda a lama, o mundo veja
Teus pés intactos sobre a cabeça da Inveja!

Lua Adversa

[Loretta Lux]

[Cecília Meirelles]

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,o outro desapareceu
...