sábado, novembro 15, 2008

Alice e a Velha Senhora [conto]


[por Cristovão Tezza]

A temeridade de pagar um anúncio no jornal — Assessoria de textos, com um número de telefone e duas indicações vagas (aulas e revisões) — foi recompensada na manhã seguinte com uma voz rouca, feminina e velha. Na verdade, meio surda, do tipo da surdez agressiva de quem não quer ouvir. Tentei esclarecer detalhes, mas ela apenas passou o endereço, disse que à tarde estaria disponível, e desligou, cortando-me a voz. Desconforto logo esquecido — iria enfrentar uma mulher autoritária —, fiquei animada com a rapidez da resposta. É duro morar sozinha; o troco que me restou daqueles dois anos e meio de desastre conjugal não dá para nada, e afinal tenho de voltar a viver. Como ler e escrever é só o que faço de prático, voltei às letras. Quem sabe logo me apareçam aulas; além do anúncio, distribuí currículos. Senti uma ponta de ansiedade: quanto cobrar? O comércio é uma atividade difícil.

Avancei pela calçada conferindo o número numa rua próxima à praça Santos Andrade até deparar com o prédio antigo, com uma boa vista para as árvores do Passeio Público, e imediatamente desenhei uma biografia imaginária da minha primeira freguesa: viúva de um alto funcionário público aposentado, recebendo uma pensão gorda, com todos os qüinqüênios a que tem direito, herdeira de uns tantos apartamentos, quer que alguém... mas o que ela quer? Cheguei a um velho balcão ainda imponente, e atrás dele o porteiro mal levantou os olhos do jornal para apontar o corredor escuro. Subi por um elevador barulhento de grades antigas e saí da gaiola como quem desembarca num velho filme, encontrando em seguida o número 703, o metal dourado dos números brilhando sobre a porta; apertei a campainha e ouvi um "já vai" arranhado, iniludivelmente autoritário, quase uma repreensão. O que me deixou feliz: minha primeira avaliação estava certa. É bom não se enganar com as pessoas. Seguiu-se um tilintar de metais — duas tetrachaves, mais a chave normal, que a velha, parece, demorou a encontrar (eu escutava a mão trêmula sofrendo naquela algema de chaves). Mas não era só — porta aberta, havia ainda uma tranca de correntinha; na breve abertura, vi os olhinhos miúdos da mulher disparados em minha direção, no meio de um mapa detalhado de rugas, tudo sob um cabelo curto tingido de amarelo. O peso de um brinco de ouro parecia inclinar sua cabeça pequena.
— Você é Alice? 

Sorri, para desarmar os espíritos, dizendo que sim. Ela bateu a porta, desajeitada, e abriu-a em seguida, liberada a correntinha.

— Vá entrando. Não repare a bagunça. 

Era o mesmo tom de quem dá ordens, mas preferi ver uma boa intenção oculta no estilo rude. Não havia bagunça nenhuma — nada estava fora do lugar. Enquanto ela voltava a lutar com as chaves, avancei lenta pelo corredor atulhado de antiguidades, pratos nas paredes, toalhinhas, mesinhas, biscuits de porcelana, bonequinhos de prata, luminárias fracas aqui e ali, e a foto antiga de uma criança desbotada com um laço enorme no cabelo ralo, que, já um tanto nervosa, peguei para ver mais de perto, um gesto antes de timidez que de abuso, ouvindo ainda aquelas chaves a tilintar atrás de mim; imaginei perguntar alguma coisa só para me aquecer — havia em tudo, pensei, o gelo de alguém que se aferra a um outro tempo. Devolvi a foto à prateleira escura e escutei súbita a voz:

— Essa era eu. 

— Uma graça — eu disse, sem mentir completamente, e continuei avançando até a sala que se abriu, mal iluminada pelas cortinas pesadas. A mulher gostava de penumbra.

— Sente ali — ela ordenou, apontando uma mesinha circular e uma cadeira de estofado gasto mas com certa dignidade. 

Obedeci, e ela arrastou outra cadeira para perto da minha, não exatamente de frente, mas (imaginei) cuidando para deixar o ouvido bom no lado certo, e assim me escutar bem. Uma mulher miúda e tensa, de uma vivacidade contida; sozinha no apartamento, todas as manhãs ela se vestiria, depois de uma noite maldormida, como quem vai a uma festa inexistente, a blusa, o sapato, os brincos, a pintura, sinais avulsos de desejos esfarelados, habitantes de um mundo paralelo em que ela não entrou e que não pode mais largar. Isso é má literatura, pensei comigo, me corrigindo; talvez isso seja eu — olhe para ela e não pense. Foi o que fiz, agora atenta, e então a mulher suspirou, senti que a couraça autoritária se afrouxava um pouco, os braços aliviaram-se sobre o colo (mas as mãos tremiam), e eu sorri, como a estimulá-la a me dizer algo, e ela enfim disse, mas não era ainda o principal — era uma averiguação:

— Você é muito nova. 

— Nem tanto — e sorri de novo, pensando nervosa se os meus 28 anos bem contados, ditos em voz alta, não seriam uma agressão aos prováveis 80 daquela mulher, alguém que coincide exatamente com a idade que tem, eu pensei; e acrescentei: como eu. Mas parece que a constatação da minha juventude a satisfez por si só, como se isso fosse o essencial, mais ainda que os meus dotes de revisora. A mulher suspirou alto agora, a cabeça balançou como em busca de um ponto de equilíbrio, os olhos giraram sem direção até que, enfim, se concentraram, diretos nos meus, sem piscar:

— O meu marido me traía. 

 Aquilo foi um choque, menos pela confissão e mais pelo fato de que eu, cinqüenta anos a menos, poderia dizer exatamente a mesma coisa a ela, sem mentir. Fiquei muda, a boca entreaberta. Será que ela havia lido corretamente os classificados?

— Espere — ela ordenou, e se ergueu da cadeira (o que a deixava quase da mesma altura; sentada, os pés balançavam) como quem esqueceu algo urgente que vai buscar correndo agora, e eu imaginei, no escuro, que ela surgisse da penumbra em que sumiu trazendo provas insofismáveis, fotografias de detetive, encontros escabrosos, confissões de próprio punho, a que se seguiria um rosário de lamentações. Eu seria paga para ouvi-la. Tomaríamos chá e comeríamos biscoitos feitos em casa. Não seria tão mau, me conformei.

Mas ela voltou em dois minutos com um punhado de folhas em branco de papel almaço, na verdade um caderno de folhas duplas, grandes, usadas nas provas escolares antigas, despejou-o na mesa, quase agressiva, e sobre ele depositou uma caneta, olhando-me agora como uma professora zangada:

— Eu quero que você escreva o que aconteceu — e então ela confessou, no primeiro momento em que deixava entrever um ponto de fragilidade: — A minha mão — e os dedos da mão esquerda agarraram o punho da mão direita — não consegue mais. E eu...
Ela queria acrescentar algo, parece, alguma outra razão secreta, mas não disse nada. Pegou a caneta novamente e estendeu-a para mim, em silêncio.

Muitas coisas passaram pela minha cabeça, entre elas as práticas, como o fato de que seria melhor escrever num laptop que escrever à mão em folhas de papel almaço; e senti as pequenas irritações da convivência — eu não era a empregada daquela mulher para ela falar daquele modo; "assessoria de textos" não significa trabalho de copista; eu estava começando carreira solo na vida e precisava de dinheiro, e foi para ganhá-lo que eu apertara aquela campainha; enfim, eu começava a desconfiar de que perdia tempo diante de uma velha louca. Mas, tudo somado, obedeci. Aproximei a cadeira, peguei a caneta daquela mão trêmula de unhas pintadas e ajeitei o maço diante de mim, escrivão medieval. Faltava luz, o que ela percebeu sem que eu dissesse — olhou em torno, como se não conhecesse a própria sala, descobriu um abajur de pé, da belle époque, arrastou-o para o lado da mesinha desembaraçando os pés do fio elétrico que se enroscava, e acendeu-o. Tranqüila agora — todas as suas ordens haviam sido cumpridas —, ela voltou a me olhar agudamente nos olhos. Como se adivinhasse um dos meus espantos — aquele escuro proposital em plena tarde ensolarada de Curitiba, que transformava a figura num esboço de Rembrandt —, ela explicou: 

— Eu sofro de fotofobia. A claridade destrói a minha vista. 

Pensei em aproveitar a momentânea paz para falar em dinheiro, mas a timidez me calou; e de qualquer forma ela não deu tempo — estendeu o braço como quem pede silêncio, olhou para o teto, fechou os olhinhos e declamou:

— Minha história.

de um transe espírita que poderia se perder se eu não fosse rápida. Escrevi na primeira linha, com capricho: Minha história.

Ela baixou a cabeça, abriu os olhos e espichou-os em direção à folha, para conferir a qualidade do meu trabalho. De repente, numa situação absurda, eu me transformava numa aluna ansiosa por aprovação da professora; cheguei a sorrir quando ela sorriu, aprovando com um balançar de cabeça. Reforçando o elogio silencioso, emendei:

— Tenho a letra firme e redonda — uma repetição exata do que um antigo professor me dissera, pensando em outra coisa, e sorri, como a indicar que eu brincava, mas ela não ouviu, voltando ao transe:

— Meu nome é Dolores Maria Rubia de Alicanto e tenho 83 anos de idade. Nasci em São Paulo em 12 de fevereiro de 1923. Mas não é disso que eu quero falar.
Aqui imaginei que eu deveria suspender o trabalho, mas não: ela prosseguia de olhos fechados em direção ao teto, e a mão trêmula parecia indicar a reiteração da ordem para que eu escrevesse tudo que viesse de sua boca, a voz clara, rouca mas nítida, empostada, lenta, no ritmo da minha escrita — escrever tudo, salvo indicação em contrário, o que quase não houve nas próximas duas horas.

— Eu quero falar do dia 13 de outubro de 1950, em Curitiba, cidade em que ele, então meu marido, um homem elegante, às vezes até bonito, servia com a patente de coronel no quartel da praça Rui Barbosa, onde ele trabalharia durante toda sua vida não muito longa. 

— Ela parou e voltou a olhar para o alto, os lábios se movendo silenciosos em alguma fala imaginária da memória. E, súbito, a voz voltou, firme: — Nesse dia, ao visitar minha amiga Lívia Ceres de Donato, então com 27 anos, estudante de medicina da Universidade Federal do Paraná, filha única do famoso desembargador Antero Fúlvio de Morais Donato, depois membro do Supremo — não, ele nunca chegou lá; era do STJ, escreva aí, do Superior Tribunal de Justiça —, e nossa vizinha no prédio novo de quatro andares da rua Cândido de Abreu, e — Dona Dolores tinha o domínio da linguagem dessas pessoas de outra geração que desde o berço conviveram com as letras, com os bons colégios, com aulas particulares, com um resíduo aristocrático de quem sabe seu lugar, e seu lugar é respeitável; ouvindo-a, eu parecia ouvir um manual do bem-falar dos tempos de antanho, com seqüências discretas de orações subordinadas que sempre se coordenavam adiante, para iniciar outra leva de informações que pareciam se agrupar mais pela volúpia da fala que pelo valor do que se dizia, mas eram sons articulados com pompa, conscientes de si mesmos e que se justificavam pelo seu simples impacto acústico, exigindo silêncio. E ela tinha também noção clara do ditado — em algum momento da vida deve ter sido professora diletante —, sabendo parar no momento exato e prosseguir quando minha mão suspendia-se, à espera. De maneira que praticamente sua fala já vinha pontuada, ainda que eu, no ato da cópia, aqui e ali modificasse alguma coisa, e sem rasuras, o que me foi me deixando feliz, como alguém em uma competição difícil, uma espécie de maratona de copista, sabendo que ninguém faria a tarefa tão bem quanto eu. E o que eu ouvia era irresistível. Abri a porta da vizinha — tínhamos intimidade para isso, amiga de muitos anos, às vezes ela ia para São Paulo, às vezes eu vinha para Curitiba — e — e aquilo era um filme de quinta categoria, num cine-pulgueiro qualquer, mas eu não fiz escândalo, eu nunca fui pessoa de fazer escândalo, odeio escândalos; algumas pessoas deveriam se dar ao respeito, eu até poderia dizer, mas isso era ainda pouco, para falar a verdade, qualquer coisa era pouco para responder à altura do que eu via, mas eu precisava estar à altura do que eu via, eu tenho um nome comprido e devo zelá-lo, e coloquei isso como um destino na minha vida: estar à altura de minha própria vida. Aqui ela parou, tomando ar, mas aflita para não perder o fio da meada. E ordenou:

— Escreva de novo, e sublinhe: Sempre quis estar à altura da minha vida. 

Mordi a ponta da caneta e quase perguntei o que afinal ela tinha visto, mas preferi esperar; ela fez uma longa pausa. Seguiram-se algumas filosofadas xaropes — o "estar à altura da vida" parece que inspirou outras tiradas profundas, que eu copiava impaciente, desejando que ela voltasse logo à brutalidade da superfície em vez de voar naquela profundidade vazia, mas era como se ela agora tivesse medo da própria voz, medo de avançar no túnel em que se metera, e me senti tentada a conduzi-la, mesmo a interrogá-la, quem sabe, mas não foi preciso. Como você pode estar à altura de você mesma quando, dando dois passos em direção a um corredor escuro, vê o que um milhão de pessoas de todas as raças, credos, etnias, nações e camadas sociais, gente de alta extração e de baixa extração, vê o que todos já devem ter visto, cada uma delas com um tipo diferente de sofrimento? Eu tinha apenas 28 anos e a paixão que vivi pelo meu marido só era empanada pelo fato de que não engravidava, como ele queria, como nós queríamos. Senti um frio no estômago — de novo, aquela era eu. Estava diante de uma sortista, delirei. Senti a respiração ofegante da mulher e temi que ela interrompesse o trabalho para continuar outro dia. Ela inclinou-se em direção às folhas, e a mão dela tocou minha mão num gesto arisco de afeto:

— Onde paramos, menina? 

Reli a última frase, e dona Dolores reanimou-se: 

— Ah, ótimo. Ficou bom. A parte que vem agora é difícil. Preparada? 

Fiz que sim, caneta em riste, olhos na linha em branco do papel almaço. 

— Eram dois cachorros! Desse jeito — e agora dona Dolores falava gesticulando, como quem descreve aos amigos, na mesa de um bar, uma cena vívida, frisando cada palavra com a força do horror, da dupla vergonha, de ver e de contar, e também com um fio residual de heroísmo, veja só o que eu passei, ela de joelhos no chão, diante da cama, os braços estendidos para a frente, e como demonstração estendeu os braços sobre a mesa como numa sessão espírita, a cabeça meio erguida para o outro lado, e por isso ela não me viu, mas gania, ela gania, e atrás, e atrás — dona Dolores sentia pudores de dizer a coisa em si, resistia a chegar às palavras, habitante de um tempo em que tudo era metáfora  — aquela, aquela bunda arrebitada, desculpe a palavra, mas é isso mesmo, aquela bunda branca redonda para o alto, e indo e voltando eu via a bunda do meu marido, de calças arriadas, também de joelhos, e também ele gania. Como eu disse: dois cachorros. O prazer que eles...

Meu desejo nervoso de rir daquela descrição grotesca acabou sendo engolido por uma comoção angustiante, o ridículo que dói — e, como se dona Dolores adivinhasse, senti mais uma vez o toque quase delicado  da mão na minha mão, o sinal de que agora não era para copiar:

— É óbvio, eu sei: aquela cena não foi feita para ser vista. Nem para ser contada. Para nada. O prazer que eles... — e aqui a mulher empacava, alguém durante cinqüenta anos revivendo uma cena supostamente incompreensível, e, por isso, sua vida terminava ali. — O prazer que eles... — e ela repetiu três, quatro vezes, a sintaxe inconclusa.

Silêncio. E em um minuto, dona Dolores recuperou a pose e retomou, numa espécie de tranco de cabeça e ombros, a narrativa de sua vida. Eu saí de lá como cheguei, em silêncio, e de fato não fez escândalo nenhum, nem no momento, nem depois, nem nunca. Apenas transformou a tragédia numa melancolia discreta, que seria entendida pelos outros como a tristeza de não ter filhos. Nunca mais eu seria a mesma, e ela ficou satisfeita com o achado de seu lugar-comum, conferindo a minha cópia. Ficou feliz quando a amiga casou-se com alguém no Rio de Janeiro, um sujeitinho que ela conheceu em trinta dias, e depois de dois ou três cartões, dela jamais teve outra notícia. Acabaria por aí meu trabalho? Não — súbito, ouvi: Mas planejei matar meu marido. Não era só uma questão de dignidade que estava em jogo — se fosse apenas isso, bastava pedir o desquite e resolvia-se o problema. Quer dizer, resolvia-se o problema dele, lépido e faceiro, mas não o meu, mulher arruinada pelo mau casamento, naquele tempo em que um desquite era uma sentença de morte, e principalmente pela provável falta de herança, tataraneta de uma geração de nobres dos quais não sobrou nem o brasão para colocar na parede. Eu deveria matá-lo, e foi o que fiz. Livrava-me da vergonha de rever aquele cachorro todos os dias, e ao mesmo tempo levava-lhe o baú de regalias da carreira militar, que usufruo até hoje. São os despojos da minha guerra do Paraguai — e aqui ela riu pela primeira vez, um riso tímido, preso, envergonhado, mas iniludivelmente feliz. A mão voltou a me tocar, agora com uma faceirice adolescente, espichando um olho maroto:

— Você escreveu mesmo isso aí? E riu alto, escondendo a boca. Em seguida, voltaram as filosofadas — Sim, aquele era um projeto à altura da minha vida, e a ele me entreguei de corpo e alma. Enquanto ela desfiava seu altruísmo avesso, minha mão começou a tremer, como se eu enfim acordasse do transe: eu estava ouvindo, e transcrevendo, uma confissão de assassinato. Eu poderia parar por ali — aquela era uma situação absurda, às ordens de uma velha louca, e de graça; começava mal minha nova carreira. Mas ao desejo de me erguer dali se contrapunha teimosa a imagem do meu ex-marido, que parecia me propor a tentação de um enredo semelhante; eu não podia deixar de ouvir dona Dolores até o fim. Comecei a ficar impaciente com a fieira de justificativas que ela ia acrescentando à própria história, como quem estraga uma boa narração com a desgraça das boas intenções. Sim, uma mulher deve saber fazer seu caminho, e eu fiz o meu. Não me arrependo de nada; e o fato de ninguém jamais ter descoberto coisa alguma, sequer meu próprio marido, que morreu me amando — e aqui dona Dolores sorriu, sonhadora —, é a prova definitiva e incontestável — ela parecia se dirigir a um tribunal imaginário, advogada apaixonada de si mesma — de que a mão da Providência me guiou.

— Vamos tomar um chá? 

Era uma senhora quase saltitante que levantou-se diante de mim, desapareceu no corredor escuro e voltou pouco tempo depois com uma bandeja de prata e os apetrechos do chá. Para não pensar, e principalmente para não tomar decisão nenhuma, fiquei relendo o que havia escrito e corrigindo uma que outra vírgula; eram várias páginas cheias, praticamente sem parágrafos, como o texto de uma escritura de fé pública. Súbito me vi eu mesma diante do mesmo Tribunal, defendendo-me de algum crime de ocultação de cadáver, uma expressão absurda que me ocorreu, memória de um enlatado de televisão de dois dias antes, e então eu diria, também com nitidez e paixão, meus senhores, aquilo era literatura; eu jamais poderia imaginar, sim, mas imaginei; mais que isso, acreditei. E mais, pior ainda — eu queria imitá-la.

— Veneno era o melhor caminho — ela prosseguiu, já impaciente pela interrupção, depois de dois goles do chá que não voltaria a tocar. Não poderia jamais consultar ninguém, o que deixaria rastro, as pessoas parece que vão grudando na gente ao longo da vida, só por acaso  nos livramos delas, e o meu crime teria de ser perfeito, ou ele sairia ganhando no final. O bom do meu plano é que ele me livrava da ansiedade diária, da sensação de vômito ao sabê-lo com outras mulheres, e houve muitas nos quatro anos seguintes, o tempo que ele levou para morrer. Freqüentei bibliotecas, e até mesmo consultei tratados de medicina da própria doutora Lívia, que ficaram para trás em caixotes de mudança, tínhamos sido unha e carne, e eu aprendi a dosar as pitadas mais ou menos homeopáticas que foram inapelavelmente arruinando o estômago, o coração, os intestinos, o pulmão, o esôfago, a garganta, a alma do meu marido, coitado, zanzando de má vontade, "isso não é nada", de médico a médico, depois melhorava, voltava a ficar ruim, e um dia simplesmente morreu. Uma tragédia. Um tipo desconhecido de vírus, disseram, algo como hoje esse tal de rotavírus, coisas assim, nomes que a medicina dá ao que não entende. Uma longa pausa. Dona Dolores parecia triste. Chorei muito no seu enterro.

O homem morreu na tarde do dia 24 de dezembro de 1954, o que foi muito conveniente; do legista às juntas médicas, todos já estavam cheios daquele prontuário insolúvel de um homem desagradável fantasiando dores, na verdade ninguém gostava do coronel metido a Casanova, tanto mais desprezível quanto mais apertava o estômago sentindo aquela azia cacete, e além disso o Natal na porta — e com uma última sentença ela parou subitamente de falar, dando um suspiro demorado: E o caso está encerrado para sempre. Então dona Dolores olhou direto nos meus olhos, já com uma sombra de estranheza agora, uma ponta distante e crescente de desconfiança que ela ainda procurou ocultar, o sorriso falso se armando nos lábios pequenos enquanto a mão recolhia cuidadosa as folhas da minha frente, como se eu pudesse roubá-las, sem descolar os olhos dos meus olhos.
— Quer mais chá? 

Era, de novo, o mesmo tom seco de quem dá ordens. Enquanto eu me servia do chá morno, as mãos trêmulas de dona Dolores investigavam o que eu havia escrito. Colocou apressada os óculos de leitura e conferiu aqui e ali, rapidamente; parecia satisfeita. Ajeitou as páginas da confissão como quem bate na mesa um maço de folhas para colocar na impressora, e decidiu:

— Preciso pagar você. 

Levou a confissão abraçada contra o peito e voltou com uma caixinha marchetada de madeira, de onde tirou algumas cédulas verdes presas com uma borrachinha.

— Isso é a aplicação que fiz com parte do que ficou do meu marido. É sempre bom ter dinheiro vivo. 

Separou do maço uma, duas, três, quatro, cinco notas, dedos trêmulos. 

— Quinhentos dólares. Isso são dólares — ela explicou, como quem dá aula a uma criança idiota. — Valem muito. 

Fiquei imóvel, sem pensar. A luz do abajur cortava-lhe a cabeça fora; do escuro veio só a voz: 
— Está bem. — Tirou mais cinco notas, a oferta final: — Mil dólares! 

Colocou as notas diante de mim — súbito, éramos inimigas mortais —, fechou a caixa e levou-a para longe, sumindo no corredor, com os passos duros de alguém que se ofende. Passou pela minha cabeça a idéia de que eu poderia permanecer sentada ali por muito tempo, e ela continuaria empilhando notas na minha mão, até me reduzir finalmente ao silêncio consentido.

Ela estava me comprando, mais do que pagando pelo serviço, cheguei a pensar por meio segundo. Sempre fui uma mulher de percepção lenta. Ajeitei as notas do mesmo modo que ela ajeitou as folhas, batendo  de leve na mesa até que todas tivessem a mesma altura e a mesma largura. Senti o cheiro de dinheiro. Dobrei o maço e guardei-o na bolsa, já ouvindo aquele desespero de chaves tentando abrir várias vezes a porta de saída até que finalmente ela se abrisse, com um suspiro duplo de alívio; passei por dona Dolores e senti a brisa fria do corredor.


Cristovão Tezza  é escritor, vencedor do Prêmio Bravo! de 2008 na área de literatura, e autor de O Filho Eterno, entre outros romances.