sábado, novembro 15, 2008

Mergulho na mente do artista [da Bravo!]


O livro ''Conversas com Woody Allen'' narra o percurso fascinante de um artista em busca de seu estilo - que tem no filme ''Vicky Cristina Barcelona'' um de seus grandes momentos

Por João Gabriel de Lima [Revista BRAVO! | Novembro/2008]

 — Vamos para Oviedo. Lá, comeremos pratos deliciosos, beberemos bons vinhos e  faremos amor.
— Quem vai fazer amor?
— Se tudo der certo, nós três.

O diálogo acima acende o rastilho de Vicky Cristina Barcelona, a nova — e  desconcertante — explosão do talento de Woody Allen. A cena, uma das primeiras do  filme, é ambientada num restaurante em Barcelona. O pintor espanhol Juan Antonio se  levanta de um jantar com amigos e caminha até a mesa das turistas americanas Vicky  e Cristina. Diante delas, dispara sua proposta objetiva e acima de tudo  surpreendente, por ser à primeira vista — Juan Antonio não as conhecia. Sua  impulsividade se justifica. No filme, que estréia neste mês no Brasil, Cristina é  Scarlett Johansson, diante de quem a junção das palavras "loira" e "fatal" nunca  soa como  mero clichê. Vicky é a atriz britânica Rebecca Hall, dona de uma  sensualidade tão intensa quanto Scarlett, porém contida — e portanto perversa. É  ela quem, nada simpática, pergunta, com ironia cortante: "Quem vai fazer amor?".  Juan Antonio responde no tom misterioso e insinuante que caracteriza o premiado  ator espanhol Javier Bardem. Neste momento sabe-se que algo vai acontecer entre o  pintor e as duas turistas. Só não se sabe que vai ser tanta coisa, e com tanta  intensidade, num jogo de reviravoltas tão intrincado que é impossível desviar o  olho da tela.

Se fosse música clássica, Vicky Cristina Barcelona seria uma ópera de Mozart, com  seus duetos, trios e quartetos que mais escondem do que revelam as verdadeiras  intenções dos personagens. Se fosse rock, seria Rolling Stones: o refrão de Satisfaction — "Eu não consigo ter prazer, mas tento, tento e tento" — poderia ser  o mote dos protagonistas do filme. Mas Vicky Cristina Barcelona não é ópera nem  rock — é cinema, e desde já um dos grandes filmes do segundo auge de Woody Allen.

O diretor americano é um dos poucos a ter dois momentos de pico na carreira. O  primeiro foi a virada dos anos 70 para os 80, quando criou, quase que em seqüência,  seu tríptico de obras-primas: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Manhattan  (1978) e Hannah e Suas Irmãs (1986). O segundo ocorre a partir do maior sucesso de  público e crítica da carreira do cineasta, Match Point (2005), o melhor filme de  Woody na opinião dele próprio. O qual, de certa forma, marca o início de outro trio  de grandes filmes, junto com o esplêndido e subestimado O Sonho de Cassandra (2007)  e, agora, Vicky Cristina Barcelona.

Chega ao Brasil também neste mês um livro que merece ser lido logo antes ou logo  depois de assistir a Vicky Cristina Barcelona: Conversas com Woody Allen, do  jornalista americano Eric Lax. No gênero entrevistas com cineastas, o volume tem  pelo menos dois antecessores de peso: o livro em que François Truffaut conversa com  Alfred Hitch cock, com o intuito de aprender os segredos daquele que escolheu para  mestre; e a obra em que Peter Bogdanovich debate com Orson Welles.  Truffaut/Hitchcock e Welles/Bogdanovich são diálogos de cineasta com cineas ta,  valem por isso, mas se ressentem de perguntas mais esclarecedoras. Conversas com Woody Allen, ao contrário, é calcado na habilidade de um entrevistador  profissional, Lax, que é também biógrafo de Woody.

O livro é resutado do esforço jornalístico de uma vida inteira. Ele se compõe dos  melhores momentos de dezenas de entrevistas que Lax fez com Woody ao longo de nada  menos do que 36 anos — já que a primeira sessão data de 1971 e o livro foi lançado nos Estados Unidos no ano passado. Em tom de brincadeira, Lax costuma dizer que é a  mais longa entrevista ainda em curso nos Estados Unidos. A edição é primorosa. Ela leva o leitor a acompanhar detalhamente a evolução do pensamento do cineasta. Conversas com Woody Allen possibilita, assim, a rara oportunidade de mergulhar na mente de um artista.

É sabido que Woody Allen tem como maior ídolo o cineasta sueco Ingmar Bergman, que  gostava de dizer que seus filmes eram fruto de motivações inconscientes, e o  resultado final era, em certa medida, obra do acaso. A julgar por Conversas com Woody Allen, o diretor americano é o oposto de seu ídolo. As entrevistas mostram  como seu processo criativo é uma construção consciente, baseada na identificação e  resolução de problemas concretos.Vicky Cristina Barcelona é uma espécie de súmula  do estilo de Woody, no sentido em que apresenta, magistralmente resolvidos, todos  os problemas que o cineasta colocou a si próprio ao longo da carreira. Por isso,  ler o livro e assistir ao filme em seguida — ou vice-versa — é uma experiência tão instigante. Vicky Cristina Barcelona tem personagens movidos primordialmente por angústias interiores. São artistas e intelectuais que, embora inteligentes e sofisticados, têm dificuldades de lidar com as próprias emoções. Suas trajetórias são amarradas num enredo de matriz literária  — no caso, os universos de Jane Austen e Henry James. Angústias interiores, personagens sofisticados, inspiração na literatura — Conversas com Woody Allen mostra como  o cineasta fez desse tripé a base de seu estilo.

1. EM BUSCA DOS CONFLITOS INTERIORES
Quando Eric Lax começou seu trabalho, em 1971, Woody  Allen ainda não podia ser chamado de cineasta. Ele era, na verdade, um comediante que fazia filmes. Woody é um mestre da frase espirituosa desde a adolescência. Aos 17 anos, já ganhava dinheiro como ghost-writer, escrevendo piadas para artistas e executivos contarem em eventos. Aos 24, sua vida mudou quando viu no palco Mort Sahl, uma estrela da stand-up comedy, o gênero americano de comédia em que um único ator, vestido à paisana, conta piadas no palco. Achou que poderia fazer sucesso contando ele próprio as piadas que escrevia — e estava certo. Sua vida cinematográfica começa como decorrência disso. Seus primeiros filmes são calcados naquele tipo de roteiro que, no jargão da atividade, são chamados de "piada-puxa-piada".As entrevistas de Eric Lax começam quando Woody fazia bastante sucesso com filmes assim:Bananas (1971), Sonhos de um Sedutor (1972), Tudo o que Você Queria Saber sobre Sexo(1972) e O Dorminhoco (1973). Mas o ci neasta, como se nota pelo livro de Lax, queria mais. "A platéia só vê uma faceta minha como ator e roteirista em  O Dorminhoco e em meus outros filmes. Aquela parte de mim que pode fazer uma comédia rasgada, de piadas, mas isso é só uma das coisas do que sou capaz", disse o diretor numa entrevista de 1974.

Na mesma conversa, ele explica o que buscava: um tipo de enredo em que os conflitos entre os personagens não decorressem necessariamente de situações concretas, mas de suas próprias angústias interiores. "Digamos que essa moça quer ir morar comigo, mas também quer manter um apartamento só dela, como símbolo psicológico da independência. Esse tipo de conflito pode nos ajudar a entender as pessoas", disse Woody na mesma entrevista. Na ocasião, estava preparando um roteiro para um novo filme com Diane Keaton: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, que se tornaria o grande ponto de mudança de sua carreira.

Os estudiosos de música clássica chamam de "Opus 1" à primeira obra de um compositor em que ele mostra as características de seu estilo, depois das chamadas "obras de juventude". Pode-se dizer que Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, que seria lançado em 1977, é o "Opus 1" de Woody Allen. Numa primeira versão, o filme se passava todo na mente do protagonista, o escritor Alvy Singer, interpretado por Woody. Felizmente Diane Keaton participou do processo. Sua composição de Annie Hall, a aspirante a cantora que namora Alvy, foi tão espetacular que a personagem acabou crescendo e ganhando vida própria. Eram, assim, dois protagonistas com vida interior intensa e conflituosa, em vez de um. Essa demanda do roteiro gerou as várias inovações estéticas que fazem de Noivo Neurótico, Noiva Nervosauma obra-prima. Numa das cenas, Alvy e Annie dizem uma coisa e pensam outra — e o que pensam aparece na parte de baixo da tela, em forma de legenda. Em outra, Woody emprega técnicas do filme de animação para falar das neuroses de infância de seu personagem. Estava definido, a partir daí, o tipo de gente que povoaria as tramas dos melhores filmes de Woody.

Em Vicky Cristina Barcelona, a personagem que mais remete a esta matriz é Vicky, interpretada pela atriz britânica Rebecca Hall. No momento em que o Juan Antonio de Javier Bardem convida as duas amigas para o serão de arte, gastronomia e sexo, ela se opõe de forma veemente. Na cena seguinte, as duas amigas voam na direção da vida de fantasias proposta pelo pintor, a bordo de um jatinho pilotado por ele. Nas idas e vindas da trama, é a indecisão de Vicky entre dois mundos — representados pelo boêmio artista espanhol e por seu simpático mas previsível noivo nova-iorquino — que motiva a maior parte das reviravoltas da trama (o roteiro dá sete viradas radicais, e é um milagre da carpintaria sofisticada de Woody o fato de o espectador nunca ficar confuso).

2. PERSONAGENS BRILHANTES, SENSÍVEIS, MAS SEM INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
É Cristina, a personagem interpretada por Scarlett Johansson, quem acaba passando mais tempo na história com Juan Antonio. Na trama, ela está à procura não apenas de um amor, mas também de uma linguagem artística para se expressar. Acaba se decidindo pela fotografia, incentivada pela ex-mulher de Juan Antonio, Maria Elena, interpretada por Penélope Cruz — numa atuação magistral, a atriz espanhola rouba todas as cenas em que aparece. Maria Elena, como Juan Antonio, é pintora. Como Frida Kahlo e Diego Rivera, os dois disputam espaço e se influenciam mutuamente. Vicky não é propriamente uma artista, mas também pertence ao mundo da cultura. Ela faz um mestrado em arte catalã, movida por duas paixões: a arquitetura de Antoni Gaudí e a música espanhola para violão. Todos se movem num círculo de poetas, pintores, escritores e músicos, que são os amigos de boemia de Juan Antonio. Apenas o noivo de Vicky, Doug, não pertence a esse mundo. Em uma das cenas do filme, ele critica a pretensão e o ar de superioridade dos que se acreditam dotados de sensibilidade artística.

Foi quando estreou Manhattan, dois anos depois de Noivo  Neurótico, Noiva Nervosa, que Woody Allen percebeu que seus filmes começavam a retratar uma tribo específica  de personagens: artistas, intelectuais, psicanalistas, gente envolvida com o mundo da cultura na cidade que nos anos 60 roubara de Paris o título de capital cultural do mundo: Nova York. Esse círculo se move em torno dos protagonistas de seus filmes, que na época eram, em geral, interpretados por ele próprio. Woody — que se considera, com certa razão, um ator limitado — acha que é capaz de interpretar um único tipo de personagem numa chave realista: o nova-iorquino 100% urbano. "Sinto que, se eu atuo num filme sofisticado, acabo fazendo o tipo do neurótico de Nova York que você já viu tantas vezes, que é, digamos, tão inteligente quanto eu na vida normal, o que não é muito", brinca Woody numa conversa com Lax em fevereiro de 2006. Para conviver com esse personagem, Woody criou sua tribo de nova-iorquinos cabeça.

Esses personagens que passaram a povoar os filmes do diretor a partir de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan serviam a uma finalidade dramática recorrente: mostrar como pessoas com muita sensibilidade e alto QI podiam se portar de maneira patética ou mesmo bizarra na hora de lidar com as próprias emoções. Mais ou menos como os intelectuais de Chicago que aparecem no livro A Mágoa Mata Mais, do escritor canadense Saul Bellow, que Woody gosta de citar em entrevistas. Os personagens principais de Manhattan são Isaac, um roteirista (interpretado por Woody), Yale, um acadêmico (Michael Murphy), Mary, uma jornalista com pretensões a intelectual (a sempre ótima Diane Keaton), e Tracy, uma adolescente que sonha estudar teatro (Mariel Hemingway, numa atuação inesquecível). Na trama, Isaac se apaixona por Mary, amante de Yale, e mantém um caso paralelo com Tracy, 20 anos mais nova. A cena final, em que o quarentão Isaac se porta com um adolescente, e a adolescente Tracy demonstra ter muito mais maturidade do que ele, é representativa da falta de inteligência emocional dos sensíveis personagens que passaram a habitar os filmes de Woody.

3. A LITERATURA COMO INSPIRAÇÃO
Numa entrevista de novembro de 1988, Lax pergunta a Woody quando ele passou a ler Tchecov e outros escritores sérios. A resposta, um pouco em tom de blague: "Foi no finzinho da escola secundária, quando comecei a sair com mulheres que me achavam iletrado. Eu achava aquelas meninas lindas: sem maquiagem, jóias de prata, bolsas de couro. Para poder ficar com elas, precisei ler".

Às vezes de forma consciente, às vezes inconscientemente, a literatura é uma referência constante nos filmes de Woody Allen. Nas conversas com Eric Lax, ele cita Faulkner e Hemingway como os escritores que mais o impressionaram num primeiro momento. Os dois gigantes do romance russo são sempre citados — de Tolstói e Dostoiévski Woody não leu apenas a obra, mas também ensaios a respeito, segundo conta no livro. E há, claro, Tchekov. Sua peça As Três Irmãs é uma das inspirações para a terceira obra-prima da primeira grande fase de Woody, Hannah e Suas Irmãs. O filme gira em torno da relação entre uma mulher bem-sucedida profissional e afetivamente, a atriz Hannah (Mia Farrow), e suas duas irmãs que ainda buscam realização nestes dois campos, a bela Lee (Barbara Hershey) e a estabanada Holly (Dianne Wiest). O conflito aparece quando o marido de Hannah, Elliot (Michael Caine), se apaixona por Lee. No filme, Woody tenta imitar a habilidade de Tchekov com o não-dito, com as entrelinhas da trama. Ele deixa entrever como a supostamente altruísta Hannah esmaga e intimida, com seu sucesso, as aspirantes a artistas Lee e Holly.


Vicky Cristina Barcelona tem duas influências literárias fortes. O filme começa com um narrador em off que define, em poucas palavras, as personalidades de Vicky e Cristina, mais ou menos como Jane Austen faz em seus romances. Mas o clima que permeia o filme, como notaram os críticos mundo afora, é mesmo o dos romances do escritor americano Henry James. O autor, nascido nos Estados Unidos e naturalizado inglês, fala recorrentemente em sua obra do choque cultural entre o Velho e o Novo Mundo. Em livros como As Asas da Pomba, os americanos são pintados como ingênuos na arte de cortejar, na comparação com os europeus, adestrados nas técnicas de sedução por séculos de literatura romântica e realista. Em Vicky Cristina Barcelona, algo do relacionamento intenso entre os europeus Juan Antonio e Maria Elena parece sempre escapar às americanas Vicky e Cristina. É como se algo essencial se perdesse na tradução do castelhano para o inglês.

No livro de entrevistas, Woody Allen credita o sucesso de Match Point à feliz combinação de diversos fatores, do roteiro correto à fotografia apropriada, e acima de tudo a química entre os atores. Em Vicky Cristina Barcelona, essa química funciona à perfeição. O casal Javier Bardem e Penélope Cruz já havia demonstrado que provocava faís ca  no cinema espanhol, desde o hoje clássico Jamón, Jamón (1991), do cineasta catalão Bigas Luna. Scarlett Johansson vem se notablizando nos filmes de Woody como a mulher que causa terremotos na trama. A loira de Encontros e Desencontros luta para ficar à altura do carisma de Penélope, e às vezes até consegue — o que não é fácil. A inglesa Rebecca Hall brilha ao interpretar a personagem que realmente move a trama. Você nunca sabe exatamente o que ela quer, por que ela quer muita coisa ao mesmo tempo — e essa gula de viver é maravilhosamente expressa num par de olhos morenos ávidos. Em Conversas com Woody Allen, o cineasta diz que, quando tal química entre os atores funciona, configura-se um momento muito especial, um acaso feliz. Quem leu o livro de  entrevistas, no entanto, sabe que nos filmes de Woody Allen nada acontece por  acaso.


O Livro
Conversas com Woody Allen, de Eric Lax. Editora Cosac Naify. 
Preço previsto: R$ 65.


O Filme
Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen. Com Scarlett Johansson, Rebecca Hall, Javier Bardem e Penélope Cruz.