sexta-feira, setembro 29, 2006

O tigre

[Parrish]

[William Blake]
Tigre! Tigre! Luz brilhante
Nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua terrível simetria?
Em que céus ou abismos,
Flamejou o fogo de teus olhos?
Sobre que asas ousou se alçar?
Que mão ousou esse fogo tomar?
E que ombro & que saber,
Foi as fibras de teu coração torcer?
E o primeiro pulso de teu coração
Que pé ou terrível mão?
Que martelo, que corrente?
Que forno forjou tua mente?
Que bigorna? Que punho magistral
Captou teu terror mortal?
Quando os astros arrojam seus raios,
Cobrindo de lágrimas os céus.
Sorriu ao sua obra contemplar?
Quem te criou, o Cordeiro foi criar?

Convite

[ArthurRackham]

[de Lya Luft]
Não sou a areia
onde se desenha um par de
asas
ou grades diante de uma
janela.
Não sou apenas a pedra que
rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo
outra.
Sou a orelha encostada na
concha
da vida, sou construção
e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério
A quatro mãos escrevemos
este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

Aos que virão depois de nós


(Bertolt Brecht)

I

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.


Eu queria ser um sábio.

Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;
Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.

Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que de
sapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:
o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a
amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Fragmentos Íntimos

[Gustave Klimt]


Você é quente assim mesmo?
Há algo estranho na tua temperatura.
Ninguém pode estar febril o tempo inteiro.
Seu corpo é de menino, parece com as "garotas" de Pasolini
As costas são largas demais.
Quando você morrer, promete que me deixa seus seios?
Vamos passá-los para mim num cartório
Não poderia ficar sem eles
Sem você sim, mas sem os seus seios jamais.
Nunca vi uma mulher urinar em pé, você é a única.
Aposto que já teve mulheres, sinto uma vibração diferente em você.
Quando fico em cima muito tempo, incomodo?
Não sou pesado?
Por que nunca me deixa tirar suas roupas?
Vai se despindo toda e me agarrando
Quem come quem?
Acho que é você quem me come
Você nunca me deu o prazer de tirar suas roupas.
Em casa, tenho uma coleção de cabelos teus, de livros teus, de cds teus, de fotos tuas desde o nosso início.
Quando ficar grávida, não haverá quem aguente tanto abuso no mundo (!)
Seu nariz vai ficar inchado.
Vai ser uma menina e eu já sei qual será o nome dela.
Gosto da maneira como me beija
A boca tem uma textura macia, mas sólida ao mesmo tempo.
Descobri, com você, que eu gosto de pés, de beijá-los, não sabia disso.
De óculos escuros você chama a atenção, fica ainda mais bonita
Todos olham te olham, mas só quem te come sou eu!
Um diabo. Aquelas menininhas que fogem dos internatos e querem transformar o mundo num caos
É o que você parece.
Fico excitado quando você chora.
Solta o cabelo, me beija.
Você é uma guria mijona
Faz xixi em todo o lugar que chega.
Eu preciso trabalhar, assim não consigo me concentrar
Na orelha não, por favor, você sabe com eu fico.
Meu amor, não roube livros, isso não está certo.
Eu puxo os cabelos da minha barba quando discutimos, está vendo?
Fica inflamado por tua causa.
Nunca usei barba, uso porque você gosta.
Não faço trabalho voluntário porque sou bonzinho, faço somente por você.
Eu te pagaria só para você me cumprimentar num aniversário.
Você tem problemas.
Quando as tuas calças jeans não servirem mais, você me dá os botões?
Por que você não usa sutian?
Você baba quando dorme, eu não ronco.
Não gosto quando ri de mim, porque durmo de meias, ou ando com sacolas na mão.
Você é um demônio, uma bruxa.
Eu te amo, viu?

quarta-feira, setembro 27, 2006

De que é composto um intelectualóide

[Munch]
Cultura se compra. A inteligência, que nada mais é que a sensibilidade vestida com o humanismo, não se adquire no mercado. Possuindo dinheiro, qualquer pessoa pode compor uma biblioteca de clássicos da arte universal. Com duas horas diárias debruçado nos livros a decorar epígrafes dos gênios, a repetir para o espelho gestos calculados, está pronto um intelectualóide. Em três meses, ao passar na rua, comadres mumificadas que levantam a bandeira da "cultura para todos" - almejando, intimamente, a projeção de suas figuras - dirão: Lá se vai um homem inteligente!

É fácil reconhecer um intelectualóide. Em geral, eles são extremamente vaidosos. Os melhores livros são os que leram (à superfície, quando não apenas, as ore-lhas das publicações), os melhores filmes os que assistiram,os melhores compositores os que apreciam. Para defender seus parcos conhecimentos e a teoria que dispõem, são capazes de qualquer coisa.

Recentemente, num conhecido bar da cidade (intelectualóides são boêmios, porque copiam, no mais das vezes, a geração dos poetas românticos), contemplei uma discussão acalorada de duas espécimes desta linhagem. Entre citações de Balzac e Proust (um preferia este, o outro aquele), quase se estapea-ram. Até que o balzaquiano tomado de ira, deixou o recinto.
Intelectualóides, quando se aventuram nos subterrâneos da criação artística, frustram-se.

Quase sempre, suas obras ou não são compreendidas, ou são compreendidas demais. No primeiro caso, alegam com seus floreios e arrogância usuais, que o "populacho" ainda não está apto a receber seu grande talento. No segundo, disparam o clichê "o sentido da arte deve ser captado democraticamente", como se o público só pudesse entender o que é óbvio e ruim.

Os pseudo-intelectuais seriam até engraçados, não fosse a misantropia de que são portadores. Quando se olham ao espelho, na sua vã ilusão, enxergam gênios renascentistas. Assim, isolam-se do coletivo, pairando soberanos sobre a grande massa, a que denominam inculta. São incapazes de ver a si mesmos, nos outros. As interpretações errôneas a que subjugaram a pobre e indefesa Musa, expurgaram a sua compaixão e solidariedade.

A advertência está feita, caro leitor. Se por acaso deparar-se com uma máquina ambulante de repetição de epígrafes, fuja, sem demora, fuja! Sob pena de ser alcunhado de asno por desconhecer a métrica de Camões.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Amor, pois que é palavra essencial

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, setembro 19, 2006

Sobre o Populacho, a Indiscrição e a Vulgaridade ou a Decadência do Humanismo

[Munch]



E lá estavam eles, arfando em sua curiosidade em frente ao monitor... Seis profissionais da área da comunicação paravam o trabalho, para verem uma famosa, em cenas de sexo explícito com o namorado numa praia . Espera, o aquivo é pesado, ainda está carregando. Ainda não? Que demora! Os seres humanos se mostram singularmente belos às vezes. Quando se despedem de alguém na rodoviária por exemplo. Outro dia, vi três pessoas dentro de um só abraço, demorado, aflito, lacrimoso.
O vídeo abriu. E os comentários... As gargalhadas... Nossa, ela está colocando o dedo no (...) dele! Risadas estrepitosas. Afasta mais para lá, não consigo ver. A praia tem bastante gente! Que safado, ele gosta assim, será que é um invertido? Ela é uma vagabunda, será que não tem vergonha? Aposto como fez para se promover, depois que o casamento dela foi à falência!
Rostos ávidos, bocas contraídas num esgar, disfarces de excitação sob a máscara de um sorriso tétrico e congelado, semblantes invejosos, cumplicidades guardadas (recalcadas), reprovação em seus rostos límpidos e respeitáveis - livres de toda a mácula do desejo - e todos satisfeitos pela violação da privacidade alheia... Eles salivavam em uníssono, cada gargalhada reunia seus perdigotos numa massa informe e invisível, seus líquidos e ordinários odores eram todos partilhados naquele instante. Ali, tudo era complementaridade e a paz finalmente reinava entre os homens de Deus. Oh, salve o grande populacho, líder supremo de todas as filosofias incultas, que ordena soberano este mundo com suas perfídias vulgares! E eu que me propunha ao Humanismo...

segunda-feira, setembro 18, 2006

Um autêntico Dostoiésvki

Em 20 de outubro de 1846, Dostoiévski escrevia a seu irmão: "Todos os meus planos foram por água abaixo e ruíram por si mesmos... Abandonei tudo [que estava escrevendo], já que isso não passava de uma repetição de coisas velhas. Agora idéias mais originais, vivas e luminosas brotam de mim no papel... Estou escrevendo outra novela, e o trabalho vai de vento em popa, está saindo com facilidade e frescor, como nunca..."

A novela a que Dostoiévski se referia com tamanho entusiasmo era A senhoria, que viria à luz no ano seguinte. Ao contrário de suas expectativas, entretanto, Bielínski – o mais influente crítico literário da época – tratou a obra como um disparate, fruto da "fantasia mirabolante" do autor.

De fato, as inovações que Dostoiévski introduziu com relação ao foco narrativo – bem como a trama que liga o intelectual e sonhador Ordínov à figura misteriosa de Katierina – permaneceram totalmente incompreendidas em seu tempo. Só no século XX, uma nova geração de leitores iria reconhecer neste livro, escrito quando o autor tinha 26 anos, uma obra-prima que antecipa Memórias do subsolo (1864) e seus grandes romances da maturidade.

Pela primeira vez em tradução direta do russo, A senhoria conta, nesta edição, com 14 xilogravuras de Paulo Penna e um esclarecedor posfácio de Fátima Bianchi, no qual a tradutora reconstitui o conturbado ambiente literário da época, destacando a atualidade da contribuição de Dostoiévski.

O livro tem tradução, posfácio e notas de Fátima Bianchi, gravuras de Paulo Camillo Penna, 144 páginas e preço sugerido de R$ 29,00.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Breve Definição






Ele é um Quixote. Um sonhador. Um exilado [ou asilado, como dizia seu avô]. Moinhos a vencer... sempre!