domingo, novembro 09, 2008

As razões de Werther [Cult]


O papel da sensibilidade na formação da individualidade

[por Magali Moura [para a revista literária CULT de novembro]

"Mau seria se cada um não tivesse em sua vida uma época em que Werther lhe parecesse como escrito especialmente para si." Goethe

Primavera de 1772. Goethe, advogado recém-formado, chega a Wetzlar para estagiar e conhece em um baile Charlotte (Lotte) Buff, noiva de Christian Kestner. Apaixona-se pela moça e se torna amigo do casal, chegando a lhes comprar o anel de noivado. Suas inclinações não são correspondidas e retorna abruptamente para Frankfurt.
Setembro: em sua viagem de volta, hospeda-se na casa de uma amiga de sua mãe, Sophie de la Roche que escrevera, em 1771, um romance epistolar A senhorita de Sternheim e lá conhece sua filha Maximiliane. Outubro: troca intensa de correspondência com Lotte e Kestner que o informa do suicídio de seu colega desde os tempos de estudante em Leipzig, Carl Wilhelm Jerusalém.
O também jovem jurista, sensível e dotado de talento artístico, sentia-se infeliz por não ser reconhecido profissionalmente e também por estar perdidamente apaixonado por uma mulher casada. Após tomar emprestado um par de pistolas de Kestner, põe fim à vida. Janeiro de 1774: Maximiliane, agora casada com um comerciante bem mais velho e infeliz, muda-se para Frankfurt e passa a freqüentar a casa de Goethe que se apaixona pela jovem sem esperanças.
Fevereiro de 1774: aos 24 anos de idade, depois de saber do suicídio de Jerusalém e após passar pela sua segunda grande decepção amorosa em um curto intervalo de tempo, Goethe encerra-se em seu quarto em "uma solidão completa" e escreve em menos de quatro semanas, "de modo bastante inconsciente e como um sonâmbulo", seu maior sucesso de público: Os sofrimentos do jovem Werther.
Escreve de um só fôlego, "sem haver antes lançado sobre o papel nenhum plano de conjunto, nem tratado qualquer de suas partes". Poucos meses depois de terminado, o romance é impresso sem alterações e lançado na Feira do Livro de Leipzig, sendo logo em seguida proibido em várias regiões por "ameaça à moral".
A gênese da obra pode ser acompanhada através do relato detalhado que Goethe faz em sua obra autobiográfica, Poesia e verdade, na qual informa sobre a estreita relação com o narrado em Werther e os fatos de sua própria vida, além de fornecer dados sobre a repercussão "prodigiosa" no público e catártica em si mesmo: "Como depois de uma confissão geral, eu me sentia de novo na posse de minha liberdade e minha alegria, e com o direito de começar uma nova vida". Werther é simultaneamente a expressão de seu tempo e a indicação do fim de um ciclo.
Em novembro do ano seguinte, Goethe parte para Weimar encerrando uma fase tormentosa: "Estou tão cansado de andar para diante e pra trás! / Para que tanta dor, tanto prazer desfeito?/ Doce paz, / Entra, ai! Entra no meu peito!". Nessa cidade se tornaria a figura central da literatura alemã e nela viria a falecer em 1832, aos 82 anos de idade.
Mas a sombra de Werther sempre o acompanhara e volta à cena cinqüenta anos depois de vir a público. Por ocasião da edição comemorativa do jubileu de sua obra, como que num ato de resgate da força viril de juventude, Goethe apaixona-se pela jovem adolescente de 16 anos Ulrike von Levetzow e tem seu pedido de casamento recusado.

Ao escrever a poesia A Werther, novamente tem a oportunidade de transformar a dor da paixão em uma obra literária: "o que não vivi e o que não me atormentou e comoveu, isto também não poetizei, nem pronunciei". O senhor septuagenário dialoga com o jovem e eterno apaixonado Werther: "Mais uma vez ousas, sombra tão pranteada / Surgir à luz do dia"
As sombras e luzes de Werther, o mais valoroso burguês
A publicação de Werther teve uma repercussão inédita. De um só golpe, a Alemanha alcançava um lugar de destaque no âmbito das discussões estético-literárias na Europa. Era a saída do ensimesmamento a que fora relegada pela Reforma luterana que interrompeu seu diálogo mais estreito com as nações mediterrâneas e consequentemente com os frutos do Renascimento.
Com um verdadeiro furor as pessoas liam, sozinhas ou em grupos, decoravam trechos e os declamavam, dezenas de críticas surgiam em revistas e jornais, além de ter sido modelo para outro livros e rapidamente traduzido em várias línguas. Mas sua aceitação não era unanimidade, era também motivo de troça pelo seu tom de exaltação apaixonada, do que é exemplo a versão parodística de Friedrich Nicolai: As alegrias do jovem Werther.
Apesar dos clamores da Igreja, a "obrinha" de Goethe havia se transformado em moda e culto não só em termos de vestimenta com os rapazes trajando-se à la Werther de calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul, como também se faziam peregrinações ao túmulo de Jerusalem. Uma verdadeira febre de Werther (Wertherfieber) alastrou-se pela Europa com vários casos de suicídio inspirados pela obra: a presença sombria de Werther era notada nas pessoas encontradas mortas abraçadas com um exemplar do livro. A arte influenciava diretamente a vida das pessoas. Invertendo-se a mão, passava-se a imitar a arte. O homem criava afinal um mundo só seu - a literatura não representa o mundo, é algo em si mesma.
Nesse sentido pode-se entender Werther como um metatexto, no qual um livro se constrói em diálogo com outros. Werther é um jovem que forma sua individualidade através da leitura: Homero, Ossian (James Macpherson), Klopstock e Lessing não são mencionados por acaso. Através deles, constrói-se o diálogo intertextual que forma uma nova maneira de ver o mundo: pelos olhos em brasa do coração.
A própria origem obscura do nome do personagem que intitula o romance de Goethe permite que se faça uma associação livre com o significado da palavra que está na raiz do nome. "Wert" em alemão significa valor ou valoroso e a terminação "-er" indica o grau comparativo, o que leva ao entendimento do nome "Werther" como "aquele que é mais valoroso do que". Essa acepção pode resumir o próprio enredo da obra que vai muito além de uma mera expressão das dores de amor de um apaixonado infeliz: a discussão sobre valores.
A procura de um novo fazer literário, mais verdadeiro e expressivo era o lema daqueles jovens que se reuniam para discutir e fazer a nova literatura, que se configurará no movimento denominado de "Tempestade e Ímpeto" ( Sturm und Drang), mesmo título da peça de 1776 de um dos integrantes do grupo em torno do jovem Goethe, Maximilian Klinger.
A questão central gira em torno dos novos valores que esta geração tenta estabelecer a partir de suas produções literárias, nas quais conceitos como gênio, fantasia, sentimento, amizade, liberdade e natureza ocupam o lugar central. Em termos de história das idéias, nessa época a Alemanha estava em plena tentativa de inserir-se no contexto da discussão intelectual européia centrada no delineamento do ideário do Iluminismo.
Enquanto Gottsched procurava na imitação dos clássicos franceses a solução para a modernização do teatro alemão, Lessing procurava na fusão de idéias dos antigos gregos com os modernos ingleses a criação do teatro burguês alemão. Esses jovens literatos, seguindo o modelo da Empfindsamkeit (Sentimentalismo), no qual cultuava-se a amizade e o sentimento de união íntima e pessoal com Deus, viam como contraposição ao artificialismo barroco e cortesão o ir além do uso exclusivo da razão e propunham uma valorização da expressão dos desejos individuais como forma de se instituir um modo mais natural de se viver.
Muito embora a proposta de Lessing de instituição de uma literatura burguesa fosse uma atitude revolucionária, faltava para eles ainda a liberdade de não se submeter ao mundo do trabalho. Diz Werther: "E és tu o único culpado disso, tu quem me introduziste nestas funções e que me pregaste a atividade. Atividade!" (carta de 24 dez.). Se a instituição do novo paradigma reside na substituição da estrutura de valor pela função que se exerce na sociedade, faltava ainda aquilo que tornaria o sujeito racional um indivíduo: a realização livre de seus desejos e inclinações. Este era o dilema de Werther: um ser "deslocado" que enfatizava a potência do sentir e se via completamente perdido, caso não conseguisse viver de modo absoluto sua paixão, esta era a única possibilidade de não se colocar limites à imaginação criadora.

As confissões de um eterno amador
O título da obra, Os sofrimentos do jovem Werther e a introdução que antecede a série de cartas resumem sinteticamente o tema: a exposição franca e direta do estado de paixão e seus reflexos, efeito alcançado pela sua forma epistolar. A intimidade com a qual o leitor acompanha o nascimento e a incrementação do estado de paixão difere de qualquer outro romance anterior, no qual se tenha usado o recurso de exposição de cartas.


Este gênero de romance estava em voga e já havia sido usado com sucesso na Inglaterra por Richardson ( Pamela, 1740; Clarissa, 1748) e na França por Rousseau ( A nova Heloísa, 1761), mas são, segundo Paul Kluchkohn, pálidas expressões da força do amor, se comparadas à pujança do texto de Goethe.

A coletânea de cartas a seu amigo Wilhelm não oferece ao leitor a contraparte, mergulhando-se única e exclusivamente no mundo de um só Eu, o de Werther. Tudo o que se vê e se percebe é unicamente filtrado pelo íntimo do personagem, o que acentua o perfil psicológico da narrativa. Gostando ou não do modo como se apresentam e se interpretam as situações, essa é a única possibilidade que é dada ao leitor, com o qual se forma uma forte aliança, deixando-o em sintonia com os embates travados no íntimo do personagem. É uma afirmação contínua do primado da subjetividade em relação ao mundo exterior tanto em termos de conteúdo como na forma. Desse modo, pode ser revelada a verdadeira natureza interior de forma imediata.

A própria natureza exterior é também um tema caro a esses jovens, sobretudo para Goethe, pois representa a própria fonte de criação. As forças orgânicas em estado de permanente transformação e movimento geram o novo, o que supera a morte como finitude e a transforma em parte de um processo ininterrupto.

Essa idéia se opõe à explicação da natureza de modo mecanicista, "hábito detestável das fórmulas científicas e dos termos consagrados" (Carta de 11 jun.). Sob essa perspectiva era analisada de forma rígida e de acordo com regras exatas da matemática, como se fora um relógio, sendo Deus o relojoeiro. Werther, assim como a natureza, pode ser interpretado sob a ótica de um jogo de forças contrárias que constituem os movimentos distintos das duas partes do livro.
A primeira força que o impulsiona num movimento ascendente é percebida através da leitura positiva do mundo. Ao chegar à cidade, Werther encontra em seus arredores um "santuário", a natureza em primavera, que nele desperta um sentimento de culto ao divino: "tudo o que me cerca parece um paraíso", representando uma volta à idade do ouro, anterior ao pecado original. Encontra também os homens do povo, os homens "naturais", "a gente humilde do lugar", com seus "costumes patriarcais": são os exemplos de uma humanidade ancestral, original e mais verdadeira. Algumas cartas adiante, desperta sua paixão por Lotte como um amor sem barreiras convencionais, por isso "natural". Na figura de Alberto tem-se seu antagonista, o representante do mundo do encaixe às normas burguesas de funcionalidade.

Já no segundo livro a força tem movimento ascendente, narrando como se sente deslocado em meio à nobreza repleta de "gente estúpida" com suas "odiosas distinções sociais". Cansado do artificialismo, ressurge a vontade de voltar a estar ao lado de Lotte, mas em seu regresso encontra uma natureza outonal, com folhas a cair revelando uma paisagem nua, e que nas tempestades demonstrava sua capacidade destruidora. Assim também iam pouco a pouco morrendo as esperanças de Werther e despertando em seu íntimo a convicção pelo ato suicida. Werther é então um forte ou um fraco? É um libelo ao Iluminismo ou um herói anti-iluminista?

Conforme as distintas interpretações feitas ao longo do século 20, seu suicídio pode ser visto como o ato de um ser desequilibrado e doente que padece de depressão maníaco-depressiva, assim como um gesto corajoso e revolucionário, de um ser incorruptível, expressão afirmativa da liberdade absoluta em contraposição às limitações impostas pela cultura burguesa. De qualquer forma, em conformidade com o próprio desejo do personagem: "Quero fruir o presente e considerar o passado como passado", o que permanece até os dias de hoje é a expressão de um eterno estado de paixão.

[Magali Moura é professora adjunta de Literatura alemã, na UERJ]