quarta-feira, dezembro 09, 2009

O velhinho do cais


Renata Lopes
O velhinho estava no mesmo lugar de costume, sentado em sua cadeira branca. Olhava o rio correr e só. Tinha uma visão privilegiada. Aquele rio já foi vida, foi fartura. Foi forte, como ele mesmo em sua juventude. Mas já não eram os mesmos. Hoje as margens estavam poluídas pelo crescimento da cidade e as águas ralas continuavam correndo insistentemente no resto de vida que lhe mantinha.
A visão não era ruim. Outrora fora melhor, mas aquele velhinho não se lembrava de ter tido tempo ou interesse para numa manhã de terça feira, sentar em sua cadeira, próximo ao jardim da frente de sua casa, e observar o curso do rio. Não. Não tivera tempo. Mas o que era o tempo agora?
Já caminhava a passos lentos. Movia-se um pouco curvado, com a ajuda de uma muleta com os olhos azuis - não tão brilhantes quanto costumavam ser - atentos a cada passo. Não ia longe. Já não tinha a mesma disposição. Voltava logo, sentava no mesmo lugar e ali ficava por horas.
Não gostava da televisão. Ouvia o jornal pelo radinho de pilha antigo, daqueles que não se encontram mais. Chamava os mais novos de filhas e filhos. Olhava para as moças bonitas, mas com o cuidado e o respeito de um menino inocente que tem medo de ser pego espiando. Falava pouco, quase nada. Não por tristeza ou desinteresse, mas por ter aprendido a ouvir e observar mais.
Ficava ali vendo o tempo passar mais devagar do que parecia antes. Aliás, de sua passagem já não entendia muito. Quanto mais teria? Amanhã se sentará para pensar, se ainda tiver tempo.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Sobre o amor [mais sincero impossível]

O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece".

Charles Bukowski

sábado, novembro 07, 2009

História dos Sentimentos

Os Sentimentos Humanos certo dia se reuniram para brincar. Depois que o Tédio bocejou três vezes porque a Indecisão não chegava a conclusão nenhuma e a Desconfiança estava tomando conta, a Loucura propôs que brincassem de esconde-esconde. A curiosidade quis saber todos os detalhes do jogo, e a Intriga começou a cochichar com os outros que certamente alguém ali iria trapacear.

O Entusiasmo saltou de contentamento e convenceu a Dúvida e a Apatia, ainda sentadas num canto, a entrarem no jogo. A Verdade achou que isso de esconder não estava com nada, a Arrogância fez cara de desdém pois a idéia não tinha sido dela, e o Medo preferiu não se arriscar: "Ah, gente, vamos deixar tudo como esta", e como sempre perdeu a oportunidade de ser feliz.

A primeira a se esconder foi a Preguiça, deixando-se cair no chão atrás de uma pedra, ali mesmo onde estava. O Otimismo escondeu-se no arco-íris, e a Inveja se ocultou co a Hipocrisia, que sorrindo fingidamente atrás de uma árvore estava odiando tudo aquilo.

A Generosidade quase não conseguia se esconder porque era grande e ainda queria abrigar meio mundo, A Culpa ficou paralizada pois já estava mais que escondida em si mesma, a Sensualidade se estendeu ao sol nun lugar bonito e secreto para saborear o que a vida lhe oferecia, porque não era nem boba nem fingida; o Egoismo achou um lugar perfeito onde não cabia ninguém mais.

A Mentira disse a Inocência que ia se esconder no fundo do oceano, onde a inocente acabou afogadam a Paixão meteu-se na cratera de um vulcão ativo, e o Esquecimento já nem sabia o que estava fazendo ali.

Depois de contar até 99 a Loucura começou a procurar. Achou um, achou outro, mas ao remexer num arbusto espesso ouviu um gemido: era o Amor, com os olhos feridos pelos espinhos.

A Loucura o tomou pelo braço e seguiu com ele, espalhando beleza pelo mundo. Desde então o Amor é cego e a loucura o acompanha.

Conto retirado do livro Pensar é transgredir de Lya Luft

quinta-feira, novembro 05, 2009

A visita do pássaro

[O pássaro - Marcos Andruchak]

Renata lopes


Quando ela entrou no apartamento ouviu um barulho semelhante ao bater de asas. Ficou intrigada. Tinha deixado o lugar trancado e vazio. Entrou e fechou a porta atrás de si. Caminhou curiosa poucos passos até a cozinha de onde vinha o barulho. Não era longe. O lugar era pequeno: quarto, banheiro, sala e cozinha. Lá encontrou o inesperado.

Um passarinho cinza tentava insistentemente sair pela janela de vidro fechada. Tentou uma, duas vezes, até que na terceira bateu com força e caiu tonto no chão. Ela compadeceu-se. Perguntava com carinho como havia entrado ali.

O pássaro que havia se assustado quando ouviu a jovem entrar, tentou desesperadamente sair pelo local mais próximo. Via o céu, mas não conseguia ultrapassar a barreira transparente que emergia diante dele. Tentou o quanto pôde até cair.

Viu um dos gigantes que costumava ver em terra. Ouviu sair dela sons estranhos, semelhantes ao modo como aquela espécie falava com seus filhotes, pensou. Com medo da aproximação esperou o momento mais apropriado e voou para o lugar por onde a jovem havia entrado. Se encolheu como se assim não pudesse ser visto.

Ela abriu a janela. Precisava fazer o pássaro tentar sair novamente. Não precisou muito esforço. O bichinho decidido e jurando que dessa vez conseguiria ultrapassar o vidro, passou feito uma bala de revólver pela moça em direção à saída. Fechou os olhinhos pequenos e quando tornou a abrí-los viu que já estava livre. Respirou fundo. Pousou a certa distancia que considerou segura e olhou de volta para o local por onde havia se aventurado entrar.

Com tanto medo não se lembrou de voltar pelo para o buraco no quarto onde encontrou passagem. Era o buraco do ar-condicionado que a casa não tinha. O pássaro suspirou aliviado. A moça que havia acompanhado divertida o bichinho debruçou-se na janela para ver a direção em que ele voou. Ao pássaro o rosto dela pareceu se deformar numa expressão esquisita. A moça ria.

O pássaro não mais se aventurou naquelas gaiolas gigantes para não ser privado de sua liberdade. A jovem encantada com a inesperada visita pegou caneta e papel e escreveu um conto.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Macumba

[by Wikipédia]

A primeira definição de Macumba que se encontra em qualquer dicionário é de: antigo instrumento musical de percussão, espécie de reco-reco, de origem africana, que dá um som de rapa (rascante); e Macumbeiro é o tocador desse instrumento.

O conceito da macumba está tão arraigado na cultura popular brasileira, que são comuns expressões como "xô macumba" e "chuta que é macumba" para demonstrar desagrado com a má sorte. As superstições nesse sentido são tão grandes, que até mesmo para a Copa do Mundo foram criados sites para espantar o azar.

Popularmente, a palavra macumba é utilizada para designar genericamente os cultos sincréticos afro-brasileiros derivados de práticas religiosas edivindades dos povos africanos trazidos ao Brasil como escravos, tais como os bantos, como o candomblé e a umbanda.

Entretanto, ainda que macumba seja confundida com o candomblé e a umbanda, os praticantes e seguidores dessas religiões recusam o uso da palavra para designá-las.

Outras acepções para o termo macumba são:


[Definitivamente não creio no poder dessas mandingas, até pq, como ateu, teria que crer no diabo também, e isso não tem nexo para mim...]

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Férias...deixando a vida me levar!


Blog também fica de férias. Atualmente, estou atualizando somente o Epifanias&Abstrações [Flanando] com mais constância. Nessas férias resolvi fixar residência em João Pessoa-PB e Olinda-PE e, apenas algumas e raras vezes, apareço em Campina Grande de quando em vez [as cidades são próximas uma da outra e ficam no máximo a 120 km de distância]. Quem quiser me ver só entrando em contato, antecipadamente. Resolvi me permitir a reflexão/curtição e deixar que o ar e brisa marinhos me sirvam de norteadores. Não quero saber mais de nada nesses dias. O PASSADO ficou em 2007, definitivamente [não, eu não errei e coloquei 2007 por acaso]! 2008 foi um ano de redefinições e 2009 será o ano das escaladas para plagas mais distantes. Movimento, movimento... deixando a vida me levar!

sábado, novembro 15, 2008

Alice e a Velha Senhora [conto]


[por Cristovão Tezza]

A temeridade de pagar um anúncio no jornal — Assessoria de textos, com um número de telefone e duas indicações vagas (aulas e revisões) — foi recompensada na manhã seguinte com uma voz rouca, feminina e velha. Na verdade, meio surda, do tipo da surdez agressiva de quem não quer ouvir. Tentei esclarecer detalhes, mas ela apenas passou o endereço, disse que à tarde estaria disponível, e desligou, cortando-me a voz. Desconforto logo esquecido — iria enfrentar uma mulher autoritária —, fiquei animada com a rapidez da resposta. É duro morar sozinha; o troco que me restou daqueles dois anos e meio de desastre conjugal não dá para nada, e afinal tenho de voltar a viver. Como ler e escrever é só o que faço de prático, voltei às letras. Quem sabe logo me apareçam aulas; além do anúncio, distribuí currículos. Senti uma ponta de ansiedade: quanto cobrar? O comércio é uma atividade difícil.

Avancei pela calçada conferindo o número numa rua próxima à praça Santos Andrade até deparar com o prédio antigo, com uma boa vista para as árvores do Passeio Público, e imediatamente desenhei uma biografia imaginária da minha primeira freguesa: viúva de um alto funcionário público aposentado, recebendo uma pensão gorda, com todos os qüinqüênios a que tem direito, herdeira de uns tantos apartamentos, quer que alguém... mas o que ela quer? Cheguei a um velho balcão ainda imponente, e atrás dele o porteiro mal levantou os olhos do jornal para apontar o corredor escuro. Subi por um elevador barulhento de grades antigas e saí da gaiola como quem desembarca num velho filme, encontrando em seguida o número 703, o metal dourado dos números brilhando sobre a porta; apertei a campainha e ouvi um "já vai" arranhado, iniludivelmente autoritário, quase uma repreensão. O que me deixou feliz: minha primeira avaliação estava certa. É bom não se enganar com as pessoas. Seguiu-se um tilintar de metais — duas tetrachaves, mais a chave normal, que a velha, parece, demorou a encontrar (eu escutava a mão trêmula sofrendo naquela algema de chaves). Mas não era só — porta aberta, havia ainda uma tranca de correntinha; na breve abertura, vi os olhinhos miúdos da mulher disparados em minha direção, no meio de um mapa detalhado de rugas, tudo sob um cabelo curto tingido de amarelo. O peso de um brinco de ouro parecia inclinar sua cabeça pequena.
— Você é Alice? 

Sorri, para desarmar os espíritos, dizendo que sim. Ela bateu a porta, desajeitada, e abriu-a em seguida, liberada a correntinha.

— Vá entrando. Não repare a bagunça. 

Era o mesmo tom de quem dá ordens, mas preferi ver uma boa intenção oculta no estilo rude. Não havia bagunça nenhuma — nada estava fora do lugar. Enquanto ela voltava a lutar com as chaves, avancei lenta pelo corredor atulhado de antiguidades, pratos nas paredes, toalhinhas, mesinhas, biscuits de porcelana, bonequinhos de prata, luminárias fracas aqui e ali, e a foto antiga de uma criança desbotada com um laço enorme no cabelo ralo, que, já um tanto nervosa, peguei para ver mais de perto, um gesto antes de timidez que de abuso, ouvindo ainda aquelas chaves a tilintar atrás de mim; imaginei perguntar alguma coisa só para me aquecer — havia em tudo, pensei, o gelo de alguém que se aferra a um outro tempo. Devolvi a foto à prateleira escura e escutei súbita a voz:

— Essa era eu. 

— Uma graça — eu disse, sem mentir completamente, e continuei avançando até a sala que se abriu, mal iluminada pelas cortinas pesadas. A mulher gostava de penumbra.

— Sente ali — ela ordenou, apontando uma mesinha circular e uma cadeira de estofado gasto mas com certa dignidade. 

Obedeci, e ela arrastou outra cadeira para perto da minha, não exatamente de frente, mas (imaginei) cuidando para deixar o ouvido bom no lado certo, e assim me escutar bem. Uma mulher miúda e tensa, de uma vivacidade contida; sozinha no apartamento, todas as manhãs ela se vestiria, depois de uma noite maldormida, como quem vai a uma festa inexistente, a blusa, o sapato, os brincos, a pintura, sinais avulsos de desejos esfarelados, habitantes de um mundo paralelo em que ela não entrou e que não pode mais largar. Isso é má literatura, pensei comigo, me corrigindo; talvez isso seja eu — olhe para ela e não pense. Foi o que fiz, agora atenta, e então a mulher suspirou, senti que a couraça autoritária se afrouxava um pouco, os braços aliviaram-se sobre o colo (mas as mãos tremiam), e eu sorri, como a estimulá-la a me dizer algo, e ela enfim disse, mas não era ainda o principal — era uma averiguação:

— Você é muito nova. 

— Nem tanto — e sorri de novo, pensando nervosa se os meus 28 anos bem contados, ditos em voz alta, não seriam uma agressão aos prováveis 80 daquela mulher, alguém que coincide exatamente com a idade que tem, eu pensei; e acrescentei: como eu. Mas parece que a constatação da minha juventude a satisfez por si só, como se isso fosse o essencial, mais ainda que os meus dotes de revisora. A mulher suspirou alto agora, a cabeça balançou como em busca de um ponto de equilíbrio, os olhos giraram sem direção até que, enfim, se concentraram, diretos nos meus, sem piscar:

— O meu marido me traía. 

 Aquilo foi um choque, menos pela confissão e mais pelo fato de que eu, cinqüenta anos a menos, poderia dizer exatamente a mesma coisa a ela, sem mentir. Fiquei muda, a boca entreaberta. Será que ela havia lido corretamente os classificados?

— Espere — ela ordenou, e se ergueu da cadeira (o que a deixava quase da mesma altura; sentada, os pés balançavam) como quem esqueceu algo urgente que vai buscar correndo agora, e eu imaginei, no escuro, que ela surgisse da penumbra em que sumiu trazendo provas insofismáveis, fotografias de detetive, encontros escabrosos, confissões de próprio punho, a que se seguiria um rosário de lamentações. Eu seria paga para ouvi-la. Tomaríamos chá e comeríamos biscoitos feitos em casa. Não seria tão mau, me conformei.

Mas ela voltou em dois minutos com um punhado de folhas em branco de papel almaço, na verdade um caderno de folhas duplas, grandes, usadas nas provas escolares antigas, despejou-o na mesa, quase agressiva, e sobre ele depositou uma caneta, olhando-me agora como uma professora zangada:

— Eu quero que você escreva o que aconteceu — e então ela confessou, no primeiro momento em que deixava entrever um ponto de fragilidade: — A minha mão — e os dedos da mão esquerda agarraram o punho da mão direita — não consegue mais. E eu...
Ela queria acrescentar algo, parece, alguma outra razão secreta, mas não disse nada. Pegou a caneta novamente e estendeu-a para mim, em silêncio.

Muitas coisas passaram pela minha cabeça, entre elas as práticas, como o fato de que seria melhor escrever num laptop que escrever à mão em folhas de papel almaço; e senti as pequenas irritações da convivência — eu não era a empregada daquela mulher para ela falar daquele modo; "assessoria de textos" não significa trabalho de copista; eu estava começando carreira solo na vida e precisava de dinheiro, e foi para ganhá-lo que eu apertara aquela campainha; enfim, eu começava a desconfiar de que perdia tempo diante de uma velha louca. Mas, tudo somado, obedeci. Aproximei a cadeira, peguei a caneta daquela mão trêmula de unhas pintadas e ajeitei o maço diante de mim, escrivão medieval. Faltava luz, o que ela percebeu sem que eu dissesse — olhou em torno, como se não conhecesse a própria sala, descobriu um abajur de pé, da belle époque, arrastou-o para o lado da mesinha desembaraçando os pés do fio elétrico que se enroscava, e acendeu-o. Tranqüila agora — todas as suas ordens haviam sido cumpridas —, ela voltou a me olhar agudamente nos olhos. Como se adivinhasse um dos meus espantos — aquele escuro proposital em plena tarde ensolarada de Curitiba, que transformava a figura num esboço de Rembrandt —, ela explicou: 

— Eu sofro de fotofobia. A claridade destrói a minha vista. 

Pensei em aproveitar a momentânea paz para falar em dinheiro, mas a timidez me calou; e de qualquer forma ela não deu tempo — estendeu o braço como quem pede silêncio, olhou para o teto, fechou os olhinhos e declamou:

— Minha história.

de um transe espírita que poderia se perder se eu não fosse rápida. Escrevi na primeira linha, com capricho: Minha história.

Ela baixou a cabeça, abriu os olhos e espichou-os em direção à folha, para conferir a qualidade do meu trabalho. De repente, numa situação absurda, eu me transformava numa aluna ansiosa por aprovação da professora; cheguei a sorrir quando ela sorriu, aprovando com um balançar de cabeça. Reforçando o elogio silencioso, emendei:

— Tenho a letra firme e redonda — uma repetição exata do que um antigo professor me dissera, pensando em outra coisa, e sorri, como a indicar que eu brincava, mas ela não ouviu, voltando ao transe:

— Meu nome é Dolores Maria Rubia de Alicanto e tenho 83 anos de idade. Nasci em São Paulo em 12 de fevereiro de 1923. Mas não é disso que eu quero falar.
Aqui imaginei que eu deveria suspender o trabalho, mas não: ela prosseguia de olhos fechados em direção ao teto, e a mão trêmula parecia indicar a reiteração da ordem para que eu escrevesse tudo que viesse de sua boca, a voz clara, rouca mas nítida, empostada, lenta, no ritmo da minha escrita — escrever tudo, salvo indicação em contrário, o que quase não houve nas próximas duas horas.

— Eu quero falar do dia 13 de outubro de 1950, em Curitiba, cidade em que ele, então meu marido, um homem elegante, às vezes até bonito, servia com a patente de coronel no quartel da praça Rui Barbosa, onde ele trabalharia durante toda sua vida não muito longa. 

— Ela parou e voltou a olhar para o alto, os lábios se movendo silenciosos em alguma fala imaginária da memória. E, súbito, a voz voltou, firme: — Nesse dia, ao visitar minha amiga Lívia Ceres de Donato, então com 27 anos, estudante de medicina da Universidade Federal do Paraná, filha única do famoso desembargador Antero Fúlvio de Morais Donato, depois membro do Supremo — não, ele nunca chegou lá; era do STJ, escreva aí, do Superior Tribunal de Justiça —, e nossa vizinha no prédio novo de quatro andares da rua Cândido de Abreu, e — Dona Dolores tinha o domínio da linguagem dessas pessoas de outra geração que desde o berço conviveram com as letras, com os bons colégios, com aulas particulares, com um resíduo aristocrático de quem sabe seu lugar, e seu lugar é respeitável; ouvindo-a, eu parecia ouvir um manual do bem-falar dos tempos de antanho, com seqüências discretas de orações subordinadas que sempre se coordenavam adiante, para iniciar outra leva de informações que pareciam se agrupar mais pela volúpia da fala que pelo valor do que se dizia, mas eram sons articulados com pompa, conscientes de si mesmos e que se justificavam pelo seu simples impacto acústico, exigindo silêncio. E ela tinha também noção clara do ditado — em algum momento da vida deve ter sido professora diletante —, sabendo parar no momento exato e prosseguir quando minha mão suspendia-se, à espera. De maneira que praticamente sua fala já vinha pontuada, ainda que eu, no ato da cópia, aqui e ali modificasse alguma coisa, e sem rasuras, o que me foi me deixando feliz, como alguém em uma competição difícil, uma espécie de maratona de copista, sabendo que ninguém faria a tarefa tão bem quanto eu. E o que eu ouvia era irresistível. Abri a porta da vizinha — tínhamos intimidade para isso, amiga de muitos anos, às vezes ela ia para São Paulo, às vezes eu vinha para Curitiba — e — e aquilo era um filme de quinta categoria, num cine-pulgueiro qualquer, mas eu não fiz escândalo, eu nunca fui pessoa de fazer escândalo, odeio escândalos; algumas pessoas deveriam se dar ao respeito, eu até poderia dizer, mas isso era ainda pouco, para falar a verdade, qualquer coisa era pouco para responder à altura do que eu via, mas eu precisava estar à altura do que eu via, eu tenho um nome comprido e devo zelá-lo, e coloquei isso como um destino na minha vida: estar à altura de minha própria vida. Aqui ela parou, tomando ar, mas aflita para não perder o fio da meada. E ordenou:

— Escreva de novo, e sublinhe: Sempre quis estar à altura da minha vida. 

Mordi a ponta da caneta e quase perguntei o que afinal ela tinha visto, mas preferi esperar; ela fez uma longa pausa. Seguiram-se algumas filosofadas xaropes — o "estar à altura da vida" parece que inspirou outras tiradas profundas, que eu copiava impaciente, desejando que ela voltasse logo à brutalidade da superfície em vez de voar naquela profundidade vazia, mas era como se ela agora tivesse medo da própria voz, medo de avançar no túnel em que se metera, e me senti tentada a conduzi-la, mesmo a interrogá-la, quem sabe, mas não foi preciso. Como você pode estar à altura de você mesma quando, dando dois passos em direção a um corredor escuro, vê o que um milhão de pessoas de todas as raças, credos, etnias, nações e camadas sociais, gente de alta extração e de baixa extração, vê o que todos já devem ter visto, cada uma delas com um tipo diferente de sofrimento? Eu tinha apenas 28 anos e a paixão que vivi pelo meu marido só era empanada pelo fato de que não engravidava, como ele queria, como nós queríamos. Senti um frio no estômago — de novo, aquela era eu. Estava diante de uma sortista, delirei. Senti a respiração ofegante da mulher e temi que ela interrompesse o trabalho para continuar outro dia. Ela inclinou-se em direção às folhas, e a mão dela tocou minha mão num gesto arisco de afeto:

— Onde paramos, menina? 

Reli a última frase, e dona Dolores reanimou-se: 

— Ah, ótimo. Ficou bom. A parte que vem agora é difícil. Preparada? 

Fiz que sim, caneta em riste, olhos na linha em branco do papel almaço. 

— Eram dois cachorros! Desse jeito — e agora dona Dolores falava gesticulando, como quem descreve aos amigos, na mesa de um bar, uma cena vívida, frisando cada palavra com a força do horror, da dupla vergonha, de ver e de contar, e também com um fio residual de heroísmo, veja só o que eu passei, ela de joelhos no chão, diante da cama, os braços estendidos para a frente, e como demonstração estendeu os braços sobre a mesa como numa sessão espírita, a cabeça meio erguida para o outro lado, e por isso ela não me viu, mas gania, ela gania, e atrás, e atrás — dona Dolores sentia pudores de dizer a coisa em si, resistia a chegar às palavras, habitante de um tempo em que tudo era metáfora  — aquela, aquela bunda arrebitada, desculpe a palavra, mas é isso mesmo, aquela bunda branca redonda para o alto, e indo e voltando eu via a bunda do meu marido, de calças arriadas, também de joelhos, e também ele gania. Como eu disse: dois cachorros. O prazer que eles...

Meu desejo nervoso de rir daquela descrição grotesca acabou sendo engolido por uma comoção angustiante, o ridículo que dói — e, como se dona Dolores adivinhasse, senti mais uma vez o toque quase delicado  da mão na minha mão, o sinal de que agora não era para copiar:

— É óbvio, eu sei: aquela cena não foi feita para ser vista. Nem para ser contada. Para nada. O prazer que eles... — e aqui a mulher empacava, alguém durante cinqüenta anos revivendo uma cena supostamente incompreensível, e, por isso, sua vida terminava ali. — O prazer que eles... — e ela repetiu três, quatro vezes, a sintaxe inconclusa.

Silêncio. E em um minuto, dona Dolores recuperou a pose e retomou, numa espécie de tranco de cabeça e ombros, a narrativa de sua vida. Eu saí de lá como cheguei, em silêncio, e de fato não fez escândalo nenhum, nem no momento, nem depois, nem nunca. Apenas transformou a tragédia numa melancolia discreta, que seria entendida pelos outros como a tristeza de não ter filhos. Nunca mais eu seria a mesma, e ela ficou satisfeita com o achado de seu lugar-comum, conferindo a minha cópia. Ficou feliz quando a amiga casou-se com alguém no Rio de Janeiro, um sujeitinho que ela conheceu em trinta dias, e depois de dois ou três cartões, dela jamais teve outra notícia. Acabaria por aí meu trabalho? Não — súbito, ouvi: Mas planejei matar meu marido. Não era só uma questão de dignidade que estava em jogo — se fosse apenas isso, bastava pedir o desquite e resolvia-se o problema. Quer dizer, resolvia-se o problema dele, lépido e faceiro, mas não o meu, mulher arruinada pelo mau casamento, naquele tempo em que um desquite era uma sentença de morte, e principalmente pela provável falta de herança, tataraneta de uma geração de nobres dos quais não sobrou nem o brasão para colocar na parede. Eu deveria matá-lo, e foi o que fiz. Livrava-me da vergonha de rever aquele cachorro todos os dias, e ao mesmo tempo levava-lhe o baú de regalias da carreira militar, que usufruo até hoje. São os despojos da minha guerra do Paraguai — e aqui ela riu pela primeira vez, um riso tímido, preso, envergonhado, mas iniludivelmente feliz. A mão voltou a me tocar, agora com uma faceirice adolescente, espichando um olho maroto:

— Você escreveu mesmo isso aí? E riu alto, escondendo a boca. Em seguida, voltaram as filosofadas — Sim, aquele era um projeto à altura da minha vida, e a ele me entreguei de corpo e alma. Enquanto ela desfiava seu altruísmo avesso, minha mão começou a tremer, como se eu enfim acordasse do transe: eu estava ouvindo, e transcrevendo, uma confissão de assassinato. Eu poderia parar por ali — aquela era uma situação absurda, às ordens de uma velha louca, e de graça; começava mal minha nova carreira. Mas ao desejo de me erguer dali se contrapunha teimosa a imagem do meu ex-marido, que parecia me propor a tentação de um enredo semelhante; eu não podia deixar de ouvir dona Dolores até o fim. Comecei a ficar impaciente com a fieira de justificativas que ela ia acrescentando à própria história, como quem estraga uma boa narração com a desgraça das boas intenções. Sim, uma mulher deve saber fazer seu caminho, e eu fiz o meu. Não me arrependo de nada; e o fato de ninguém jamais ter descoberto coisa alguma, sequer meu próprio marido, que morreu me amando — e aqui dona Dolores sorriu, sonhadora —, é a prova definitiva e incontestável — ela parecia se dirigir a um tribunal imaginário, advogada apaixonada de si mesma — de que a mão da Providência me guiou.

— Vamos tomar um chá? 

Era uma senhora quase saltitante que levantou-se diante de mim, desapareceu no corredor escuro e voltou pouco tempo depois com uma bandeja de prata e os apetrechos do chá. Para não pensar, e principalmente para não tomar decisão nenhuma, fiquei relendo o que havia escrito e corrigindo uma que outra vírgula; eram várias páginas cheias, praticamente sem parágrafos, como o texto de uma escritura de fé pública. Súbito me vi eu mesma diante do mesmo Tribunal, defendendo-me de algum crime de ocultação de cadáver, uma expressão absurda que me ocorreu, memória de um enlatado de televisão de dois dias antes, e então eu diria, também com nitidez e paixão, meus senhores, aquilo era literatura; eu jamais poderia imaginar, sim, mas imaginei; mais que isso, acreditei. E mais, pior ainda — eu queria imitá-la.

— Veneno era o melhor caminho — ela prosseguiu, já impaciente pela interrupção, depois de dois goles do chá que não voltaria a tocar. Não poderia jamais consultar ninguém, o que deixaria rastro, as pessoas parece que vão grudando na gente ao longo da vida, só por acaso  nos livramos delas, e o meu crime teria de ser perfeito, ou ele sairia ganhando no final. O bom do meu plano é que ele me livrava da ansiedade diária, da sensação de vômito ao sabê-lo com outras mulheres, e houve muitas nos quatro anos seguintes, o tempo que ele levou para morrer. Freqüentei bibliotecas, e até mesmo consultei tratados de medicina da própria doutora Lívia, que ficaram para trás em caixotes de mudança, tínhamos sido unha e carne, e eu aprendi a dosar as pitadas mais ou menos homeopáticas que foram inapelavelmente arruinando o estômago, o coração, os intestinos, o pulmão, o esôfago, a garganta, a alma do meu marido, coitado, zanzando de má vontade, "isso não é nada", de médico a médico, depois melhorava, voltava a ficar ruim, e um dia simplesmente morreu. Uma tragédia. Um tipo desconhecido de vírus, disseram, algo como hoje esse tal de rotavírus, coisas assim, nomes que a medicina dá ao que não entende. Uma longa pausa. Dona Dolores parecia triste. Chorei muito no seu enterro.

O homem morreu na tarde do dia 24 de dezembro de 1954, o que foi muito conveniente; do legista às juntas médicas, todos já estavam cheios daquele prontuário insolúvel de um homem desagradável fantasiando dores, na verdade ninguém gostava do coronel metido a Casanova, tanto mais desprezível quanto mais apertava o estômago sentindo aquela azia cacete, e além disso o Natal na porta — e com uma última sentença ela parou subitamente de falar, dando um suspiro demorado: E o caso está encerrado para sempre. Então dona Dolores olhou direto nos meus olhos, já com uma sombra de estranheza agora, uma ponta distante e crescente de desconfiança que ela ainda procurou ocultar, o sorriso falso se armando nos lábios pequenos enquanto a mão recolhia cuidadosa as folhas da minha frente, como se eu pudesse roubá-las, sem descolar os olhos dos meus olhos.
— Quer mais chá? 

Era, de novo, o mesmo tom seco de quem dá ordens. Enquanto eu me servia do chá morno, as mãos trêmulas de dona Dolores investigavam o que eu havia escrito. Colocou apressada os óculos de leitura e conferiu aqui e ali, rapidamente; parecia satisfeita. Ajeitou as páginas da confissão como quem bate na mesa um maço de folhas para colocar na impressora, e decidiu:

— Preciso pagar você. 

Levou a confissão abraçada contra o peito e voltou com uma caixinha marchetada de madeira, de onde tirou algumas cédulas verdes presas com uma borrachinha.

— Isso é a aplicação que fiz com parte do que ficou do meu marido. É sempre bom ter dinheiro vivo. 

Separou do maço uma, duas, três, quatro, cinco notas, dedos trêmulos. 

— Quinhentos dólares. Isso são dólares — ela explicou, como quem dá aula a uma criança idiota. — Valem muito. 

Fiquei imóvel, sem pensar. A luz do abajur cortava-lhe a cabeça fora; do escuro veio só a voz: 
— Está bem. — Tirou mais cinco notas, a oferta final: — Mil dólares! 

Colocou as notas diante de mim — súbito, éramos inimigas mortais —, fechou a caixa e levou-a para longe, sumindo no corredor, com os passos duros de alguém que se ofende. Passou pela minha cabeça a idéia de que eu poderia permanecer sentada ali por muito tempo, e ela continuaria empilhando notas na minha mão, até me reduzir finalmente ao silêncio consentido.

Ela estava me comprando, mais do que pagando pelo serviço, cheguei a pensar por meio segundo. Sempre fui uma mulher de percepção lenta. Ajeitei as notas do mesmo modo que ela ajeitou as folhas, batendo  de leve na mesa até que todas tivessem a mesma altura e a mesma largura. Senti o cheiro de dinheiro. Dobrei o maço e guardei-o na bolsa, já ouvindo aquele desespero de chaves tentando abrir várias vezes a porta de saída até que finalmente ela se abrisse, com um suspiro duplo de alívio; passei por dona Dolores e senti a brisa fria do corredor.


Cristovão Tezza  é escritor, vencedor do Prêmio Bravo! de 2008 na área de literatura, e autor de O Filho Eterno, entre outros romances.

Mergulho na mente do artista [da Bravo!]


O livro ''Conversas com Woody Allen'' narra o percurso fascinante de um artista em busca de seu estilo - que tem no filme ''Vicky Cristina Barcelona'' um de seus grandes momentos

Por João Gabriel de Lima [Revista BRAVO! | Novembro/2008]

 — Vamos para Oviedo. Lá, comeremos pratos deliciosos, beberemos bons vinhos e  faremos amor.
— Quem vai fazer amor?
— Se tudo der certo, nós três.

O diálogo acima acende o rastilho de Vicky Cristina Barcelona, a nova — e  desconcertante — explosão do talento de Woody Allen. A cena, uma das primeiras do  filme, é ambientada num restaurante em Barcelona. O pintor espanhol Juan Antonio se  levanta de um jantar com amigos e caminha até a mesa das turistas americanas Vicky  e Cristina. Diante delas, dispara sua proposta objetiva e acima de tudo  surpreendente, por ser à primeira vista — Juan Antonio não as conhecia. Sua  impulsividade se justifica. No filme, que estréia neste mês no Brasil, Cristina é  Scarlett Johansson, diante de quem a junção das palavras "loira" e "fatal" nunca  soa como  mero clichê. Vicky é a atriz britânica Rebecca Hall, dona de uma  sensualidade tão intensa quanto Scarlett, porém contida — e portanto perversa. É  ela quem, nada simpática, pergunta, com ironia cortante: "Quem vai fazer amor?".  Juan Antonio responde no tom misterioso e insinuante que caracteriza o premiado  ator espanhol Javier Bardem. Neste momento sabe-se que algo vai acontecer entre o  pintor e as duas turistas. Só não se sabe que vai ser tanta coisa, e com tanta  intensidade, num jogo de reviravoltas tão intrincado que é impossível desviar o  olho da tela.

Se fosse música clássica, Vicky Cristina Barcelona seria uma ópera de Mozart, com  seus duetos, trios e quartetos que mais escondem do que revelam as verdadeiras  intenções dos personagens. Se fosse rock, seria Rolling Stones: o refrão de Satisfaction — "Eu não consigo ter prazer, mas tento, tento e tento" — poderia ser  o mote dos protagonistas do filme. Mas Vicky Cristina Barcelona não é ópera nem  rock — é cinema, e desde já um dos grandes filmes do segundo auge de Woody Allen.

O diretor americano é um dos poucos a ter dois momentos de pico na carreira. O  primeiro foi a virada dos anos 70 para os 80, quando criou, quase que em seqüência,  seu tríptico de obras-primas: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Manhattan  (1978) e Hannah e Suas Irmãs (1986). O segundo ocorre a partir do maior sucesso de  público e crítica da carreira do cineasta, Match Point (2005), o melhor filme de  Woody na opinião dele próprio. O qual, de certa forma, marca o início de outro trio  de grandes filmes, junto com o esplêndido e subestimado O Sonho de Cassandra (2007)  e, agora, Vicky Cristina Barcelona.

Chega ao Brasil também neste mês um livro que merece ser lido logo antes ou logo  depois de assistir a Vicky Cristina Barcelona: Conversas com Woody Allen, do  jornalista americano Eric Lax. No gênero entrevistas com cineastas, o volume tem  pelo menos dois antecessores de peso: o livro em que François Truffaut conversa com  Alfred Hitch cock, com o intuito de aprender os segredos daquele que escolheu para  mestre; e a obra em que Peter Bogdanovich debate com Orson Welles.  Truffaut/Hitchcock e Welles/Bogdanovich são diálogos de cineasta com cineas ta,  valem por isso, mas se ressentem de perguntas mais esclarecedoras. Conversas com Woody Allen, ao contrário, é calcado na habilidade de um entrevistador  profissional, Lax, que é também biógrafo de Woody.

O livro é resutado do esforço jornalístico de uma vida inteira. Ele se compõe dos  melhores momentos de dezenas de entrevistas que Lax fez com Woody ao longo de nada  menos do que 36 anos — já que a primeira sessão data de 1971 e o livro foi lançado nos Estados Unidos no ano passado. Em tom de brincadeira, Lax costuma dizer que é a  mais longa entrevista ainda em curso nos Estados Unidos. A edição é primorosa. Ela leva o leitor a acompanhar detalhamente a evolução do pensamento do cineasta. Conversas com Woody Allen possibilita, assim, a rara oportunidade de mergulhar na mente de um artista.

É sabido que Woody Allen tem como maior ídolo o cineasta sueco Ingmar Bergman, que  gostava de dizer que seus filmes eram fruto de motivações inconscientes, e o  resultado final era, em certa medida, obra do acaso. A julgar por Conversas com Woody Allen, o diretor americano é o oposto de seu ídolo. As entrevistas mostram  como seu processo criativo é uma construção consciente, baseada na identificação e  resolução de problemas concretos.Vicky Cristina Barcelona é uma espécie de súmula  do estilo de Woody, no sentido em que apresenta, magistralmente resolvidos, todos  os problemas que o cineasta colocou a si próprio ao longo da carreira. Por isso,  ler o livro e assistir ao filme em seguida — ou vice-versa — é uma experiência tão instigante. Vicky Cristina Barcelona tem personagens movidos primordialmente por angústias interiores. São artistas e intelectuais que, embora inteligentes e sofisticados, têm dificuldades de lidar com as próprias emoções. Suas trajetórias são amarradas num enredo de matriz literária  — no caso, os universos de Jane Austen e Henry James. Angústias interiores, personagens sofisticados, inspiração na literatura — Conversas com Woody Allen mostra como  o cineasta fez desse tripé a base de seu estilo.

1. EM BUSCA DOS CONFLITOS INTERIORES
Quando Eric Lax começou seu trabalho, em 1971, Woody  Allen ainda não podia ser chamado de cineasta. Ele era, na verdade, um comediante que fazia filmes. Woody é um mestre da frase espirituosa desde a adolescência. Aos 17 anos, já ganhava dinheiro como ghost-writer, escrevendo piadas para artistas e executivos contarem em eventos. Aos 24, sua vida mudou quando viu no palco Mort Sahl, uma estrela da stand-up comedy, o gênero americano de comédia em que um único ator, vestido à paisana, conta piadas no palco. Achou que poderia fazer sucesso contando ele próprio as piadas que escrevia — e estava certo. Sua vida cinematográfica começa como decorrência disso. Seus primeiros filmes são calcados naquele tipo de roteiro que, no jargão da atividade, são chamados de "piada-puxa-piada".As entrevistas de Eric Lax começam quando Woody fazia bastante sucesso com filmes assim:Bananas (1971), Sonhos de um Sedutor (1972), Tudo o que Você Queria Saber sobre Sexo(1972) e O Dorminhoco (1973). Mas o ci neasta, como se nota pelo livro de Lax, queria mais. "A platéia só vê uma faceta minha como ator e roteirista em  O Dorminhoco e em meus outros filmes. Aquela parte de mim que pode fazer uma comédia rasgada, de piadas, mas isso é só uma das coisas do que sou capaz", disse o diretor numa entrevista de 1974.

Na mesma conversa, ele explica o que buscava: um tipo de enredo em que os conflitos entre os personagens não decorressem necessariamente de situações concretas, mas de suas próprias angústias interiores. "Digamos que essa moça quer ir morar comigo, mas também quer manter um apartamento só dela, como símbolo psicológico da independência. Esse tipo de conflito pode nos ajudar a entender as pessoas", disse Woody na mesma entrevista. Na ocasião, estava preparando um roteiro para um novo filme com Diane Keaton: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, que se tornaria o grande ponto de mudança de sua carreira.

Os estudiosos de música clássica chamam de "Opus 1" à primeira obra de um compositor em que ele mostra as características de seu estilo, depois das chamadas "obras de juventude". Pode-se dizer que Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, que seria lançado em 1977, é o "Opus 1" de Woody Allen. Numa primeira versão, o filme se passava todo na mente do protagonista, o escritor Alvy Singer, interpretado por Woody. Felizmente Diane Keaton participou do processo. Sua composição de Annie Hall, a aspirante a cantora que namora Alvy, foi tão espetacular que a personagem acabou crescendo e ganhando vida própria. Eram, assim, dois protagonistas com vida interior intensa e conflituosa, em vez de um. Essa demanda do roteiro gerou as várias inovações estéticas que fazem de Noivo Neurótico, Noiva Nervosauma obra-prima. Numa das cenas, Alvy e Annie dizem uma coisa e pensam outra — e o que pensam aparece na parte de baixo da tela, em forma de legenda. Em outra, Woody emprega técnicas do filme de animação para falar das neuroses de infância de seu personagem. Estava definido, a partir daí, o tipo de gente que povoaria as tramas dos melhores filmes de Woody.

Em Vicky Cristina Barcelona, a personagem que mais remete a esta matriz é Vicky, interpretada pela atriz britânica Rebecca Hall. No momento em que o Juan Antonio de Javier Bardem convida as duas amigas para o serão de arte, gastronomia e sexo, ela se opõe de forma veemente. Na cena seguinte, as duas amigas voam na direção da vida de fantasias proposta pelo pintor, a bordo de um jatinho pilotado por ele. Nas idas e vindas da trama, é a indecisão de Vicky entre dois mundos — representados pelo boêmio artista espanhol e por seu simpático mas previsível noivo nova-iorquino — que motiva a maior parte das reviravoltas da trama (o roteiro dá sete viradas radicais, e é um milagre da carpintaria sofisticada de Woody o fato de o espectador nunca ficar confuso).

2. PERSONAGENS BRILHANTES, SENSÍVEIS, MAS SEM INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
É Cristina, a personagem interpretada por Scarlett Johansson, quem acaba passando mais tempo na história com Juan Antonio. Na trama, ela está à procura não apenas de um amor, mas também de uma linguagem artística para se expressar. Acaba se decidindo pela fotografia, incentivada pela ex-mulher de Juan Antonio, Maria Elena, interpretada por Penélope Cruz — numa atuação magistral, a atriz espanhola rouba todas as cenas em que aparece. Maria Elena, como Juan Antonio, é pintora. Como Frida Kahlo e Diego Rivera, os dois disputam espaço e se influenciam mutuamente. Vicky não é propriamente uma artista, mas também pertence ao mundo da cultura. Ela faz um mestrado em arte catalã, movida por duas paixões: a arquitetura de Antoni Gaudí e a música espanhola para violão. Todos se movem num círculo de poetas, pintores, escritores e músicos, que são os amigos de boemia de Juan Antonio. Apenas o noivo de Vicky, Doug, não pertence a esse mundo. Em uma das cenas do filme, ele critica a pretensão e o ar de superioridade dos que se acreditam dotados de sensibilidade artística.

Foi quando estreou Manhattan, dois anos depois de Noivo  Neurótico, Noiva Nervosa, que Woody Allen percebeu que seus filmes começavam a retratar uma tribo específica  de personagens: artistas, intelectuais, psicanalistas, gente envolvida com o mundo da cultura na cidade que nos anos 60 roubara de Paris o título de capital cultural do mundo: Nova York. Esse círculo se move em torno dos protagonistas de seus filmes, que na época eram, em geral, interpretados por ele próprio. Woody — que se considera, com certa razão, um ator limitado — acha que é capaz de interpretar um único tipo de personagem numa chave realista: o nova-iorquino 100% urbano. "Sinto que, se eu atuo num filme sofisticado, acabo fazendo o tipo do neurótico de Nova York que você já viu tantas vezes, que é, digamos, tão inteligente quanto eu na vida normal, o que não é muito", brinca Woody numa conversa com Lax em fevereiro de 2006. Para conviver com esse personagem, Woody criou sua tribo de nova-iorquinos cabeça.

Esses personagens que passaram a povoar os filmes do diretor a partir de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan serviam a uma finalidade dramática recorrente: mostrar como pessoas com muita sensibilidade e alto QI podiam se portar de maneira patética ou mesmo bizarra na hora de lidar com as próprias emoções. Mais ou menos como os intelectuais de Chicago que aparecem no livro A Mágoa Mata Mais, do escritor canadense Saul Bellow, que Woody gosta de citar em entrevistas. Os personagens principais de Manhattan são Isaac, um roteirista (interpretado por Woody), Yale, um acadêmico (Michael Murphy), Mary, uma jornalista com pretensões a intelectual (a sempre ótima Diane Keaton), e Tracy, uma adolescente que sonha estudar teatro (Mariel Hemingway, numa atuação inesquecível). Na trama, Isaac se apaixona por Mary, amante de Yale, e mantém um caso paralelo com Tracy, 20 anos mais nova. A cena final, em que o quarentão Isaac se porta com um adolescente, e a adolescente Tracy demonstra ter muito mais maturidade do que ele, é representativa da falta de inteligência emocional dos sensíveis personagens que passaram a habitar os filmes de Woody.

3. A LITERATURA COMO INSPIRAÇÃO
Numa entrevista de novembro de 1988, Lax pergunta a Woody quando ele passou a ler Tchecov e outros escritores sérios. A resposta, um pouco em tom de blague: "Foi no finzinho da escola secundária, quando comecei a sair com mulheres que me achavam iletrado. Eu achava aquelas meninas lindas: sem maquiagem, jóias de prata, bolsas de couro. Para poder ficar com elas, precisei ler".

Às vezes de forma consciente, às vezes inconscientemente, a literatura é uma referência constante nos filmes de Woody Allen. Nas conversas com Eric Lax, ele cita Faulkner e Hemingway como os escritores que mais o impressionaram num primeiro momento. Os dois gigantes do romance russo são sempre citados — de Tolstói e Dostoiévski Woody não leu apenas a obra, mas também ensaios a respeito, segundo conta no livro. E há, claro, Tchekov. Sua peça As Três Irmãs é uma das inspirações para a terceira obra-prima da primeira grande fase de Woody, Hannah e Suas Irmãs. O filme gira em torno da relação entre uma mulher bem-sucedida profissional e afetivamente, a atriz Hannah (Mia Farrow), e suas duas irmãs que ainda buscam realização nestes dois campos, a bela Lee (Barbara Hershey) e a estabanada Holly (Dianne Wiest). O conflito aparece quando o marido de Hannah, Elliot (Michael Caine), se apaixona por Lee. No filme, Woody tenta imitar a habilidade de Tchekov com o não-dito, com as entrelinhas da trama. Ele deixa entrever como a supostamente altruísta Hannah esmaga e intimida, com seu sucesso, as aspirantes a artistas Lee e Holly.


Vicky Cristina Barcelona tem duas influências literárias fortes. O filme começa com um narrador em off que define, em poucas palavras, as personalidades de Vicky e Cristina, mais ou menos como Jane Austen faz em seus romances. Mas o clima que permeia o filme, como notaram os críticos mundo afora, é mesmo o dos romances do escritor americano Henry James. O autor, nascido nos Estados Unidos e naturalizado inglês, fala recorrentemente em sua obra do choque cultural entre o Velho e o Novo Mundo. Em livros como As Asas da Pomba, os americanos são pintados como ingênuos na arte de cortejar, na comparação com os europeus, adestrados nas técnicas de sedução por séculos de literatura romântica e realista. Em Vicky Cristina Barcelona, algo do relacionamento intenso entre os europeus Juan Antonio e Maria Elena parece sempre escapar às americanas Vicky e Cristina. É como se algo essencial se perdesse na tradução do castelhano para o inglês.

No livro de entrevistas, Woody Allen credita o sucesso de Match Point à feliz combinação de diversos fatores, do roteiro correto à fotografia apropriada, e acima de tudo a química entre os atores. Em Vicky Cristina Barcelona, essa química funciona à perfeição. O casal Javier Bardem e Penélope Cruz já havia demonstrado que provocava faís ca  no cinema espanhol, desde o hoje clássico Jamón, Jamón (1991), do cineasta catalão Bigas Luna. Scarlett Johansson vem se notablizando nos filmes de Woody como a mulher que causa terremotos na trama. A loira de Encontros e Desencontros luta para ficar à altura do carisma de Penélope, e às vezes até consegue — o que não é fácil. A inglesa Rebecca Hall brilha ao interpretar a personagem que realmente move a trama. Você nunca sabe exatamente o que ela quer, por que ela quer muita coisa ao mesmo tempo — e essa gula de viver é maravilhosamente expressa num par de olhos morenos ávidos. Em Conversas com Woody Allen, o cineasta diz que, quando tal química entre os atores funciona, configura-se um momento muito especial, um acaso feliz. Quem leu o livro de  entrevistas, no entanto, sabe que nos filmes de Woody Allen nada acontece por  acaso.


O Livro
Conversas com Woody Allen, de Eric Lax. Editora Cosac Naify. 
Preço previsto: R$ 65.


O Filme
Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen. Com Scarlett Johansson, Rebecca Hall, Javier Bardem e Penélope Cruz.